A gratuita salvação
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
- 29 de out. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 26 de nov. de 2022
O Evangelho deste domingo nos traz uma metáfora através da cidade que Jesus atravessa. Jericó é uma cidade abaixo do nível do mar, a mais baixa do planeta, um lugar que na linguagem bíblica se torna imagem do abismo interior que todo homem pode se afundar. Entretanto, é nesse lugar que o Senhor passa continuamente oferecendo o dom da salvação. Em nossas vidas, somos visitados pelas incertezas, angústias e desamparos quando atravessamos períodos complicados da nossa existência ou quando estamos diante de situações complexas que acreditamos não ter solução ou alguma saída.
Nessa narrativa somos atravessados por um protagonista chamado Zaqueu. O evangelista Lucas, apresenta-o como um homem sem esperança, sem saída e solução para sua condição. Ele não é somente um cobrador de impostos, mas o “chefe” deles. Ele se aproveitava de sua condição de chefe para explorar, roubar e oprimir. Zaqueu era rico não por ganhos honestos, mas porque pedia um “suborno”. Isso aumentava o desprezo que as pessoas tinham dele. Personagem publicamente impuro, pecador, que vivia em contato, não somente com o dinheiro, mas com o arrecadamento realizado em nome de pagãos opressores. Sua função social implicava comportamentos incorretos e deploráveis para com seus concidadãos. A alusão à sua condição física: “era muito baixo”, nos diz algo da sua condição humana.
No capítulo anterior deste mesmo Evangelho, nos foi mostrado um outro cobrador de impostos que saiu justificado da sua oração no Templo. Reconhecendo suas limitações e fragilidades, ele conhecia a verdade, sendo capaz de saber quem era Deus. Ele experimentou Deus no amor misericordioso da absoluta gratuidade. O cobrador de impostos aceitando seus limites e imperfeições, reconheceu-se pecador. Ele não precisava de se esconder. Sua imperfeição era óbvia, pois trabalhava para os pagãos tocando o dinheiro. Era um ser impuro e limitado. Fazia um trabalho considerado maldito e proibido. Por ser evidente, não precisava esconder sua imperfeição. Hoje, Lucas apresenta não um cobrador de impostos, mas o chefe dos cobradores de impostos a fim de mostrar que, até mesmo o chefe, saiu justificado do autêntico encontro com Jesus. Se na narrativa anterior, o contato com Deus aconteceu através da oração, nesta, o contato acontece com a presença real do Senhor. O chefe Zaqueu procurava ver quem era Jesus.
Em sua entrada em Jericó, Jesus havia encontrado e curado um cego. Num certo sentido, Zaqueu também estava cego por não conseguir encontrar uma via de saída para sua situação. Ser cego é vivenciar, sem fim, a solidão e a escuridão. A situação de chefe dos cobradores de impostos, faz de Zaqueu, um homem não amado e não reconhecido. Todo o esforço destinado para ver Jesus é sinal de que ele precisava de alguém que o observasse, que o visse não como um chefe, mas como um homem. Com seu total esforço para ver Jesus, ele foi visto por Jesus. Ele desejava ver Jesus sem que Jesus o visse, pois não se considerava digno. Entretanto, a iniciativa parte do olhar de Jesus. Ele o vê primeiro sobre a árvore e o pede para hospedar-se em sua casa. O olhar e o pedido de Jesus fazem tudo mudar. Antes do desejo de Zaqueu, existia o desejo de Jesus. Certamente, para Zaqueu, a possibilidade de que Jesus entrasse em sua casa era improvável, impensável e impossível.
No olhar de Jesus, Zaqueu não encontra reprovação, mas acolhida, ternura e misericórdia. Embora, sentindo-se indigno e acreditando que sua casa era inapropriada para receber Jesus, ele aceita e obedece ao pedido de Jesus. Todos que presenciaram o comportamento de Jesus, murmuravam entre si. Porém, o chefe dos publicanos consegue mostrar de forma concreta e sincera seu arrependimento: “Ele desceu depressa, e recebeu Jesus com alegria”. Este acontecimento nos mostra que Jesus não havia ido a Jericó por acaso. O motivo que O faz passar por esta cidade era Zaqueu. Jesus havia sido enviado pelo Pai a ir ao encontro dos pecadores, fazer morada no meio deles e dar-lhes a salvação.
A gratuidade do amor de Deus emerge nesta narrativa, bem como na parábola do fariseu e do publicano, do domingo anterior. A justificação e a graça acontecem naqueles que são capazes de se reconhecerem necessitados. A autenticidade da vida cristã cresce no reconhecimento de que precisamos de Alguém para suprir nossas necessidades, sobretudo, aquelas não podem ser supridas sozinhas por nós mesmos. A missão de Jesus é salvar aqueles que não conseguem se salvar sozinhos e que não encontram forças para levantarem-se quando desejam uma solução. Jesus é o sinal tangível do amor de Deus: "Hoje a salvação entrou nesta casa”. A experiência da gratuidade do amor de Deus é o que realmente transforma nossa vida e nos torna capazes de fazer mudanças. O que muda a vida das pessoas não são as regras moralistas, mas o amor gratuito de Deus.
A experiência do amor de Deus é quem transforma pecadores em amigos e discípulos de Jesus. O olhar misericordioso do Senhor nos alcança, antes mesmo que nós percebamos a necessidade e o desejo de salvação. Entretanto, fazer a experiência amorosa exige reconhecer nossa própria miséria, limitação e incapacidade de nos salvar sozinhos. Deus nos amou total e livremente, sem nenhum merecimento da nossa parte. O pedido de acolhida de Jesus, encontra em Zaqueu a disposição consciente e a autorresponsabilidade pelo que fazia: “Senhor, eis que dou a metade dos meus bens aos pobres e se defraudei a alguém, restituo-lhe o quádruplo”.
Zaqueu é capaz de construir para si, uma proposta “penitencial”. O acolhimento e a atenção de Jesus foram capazes de fazê-lo ter consciência da mesquinhez de sua vida levando-o à mudança de mentalidade e de comportamento. Ter o Senhor ali, em sua casa, fez com que ele substituísse o poder pelo oferecer. Na proposta elaborada, não está a lógica retributiva e nem equivalente. Muito menos, uma lógica que subestima e se opõe à justiça, mas uma lógica que propõe a dinâmica restitutiva, restaurativa e superabundante. O perdão supõe trabalho, esforço, tempo, generosidade, reconciliação e libertação. Aquilo que o jovem rico não consegue fazer, saindo decepcionado do encontro com Jesus, Zaqueu o faz. Aliás, ele é o único rico no Evangelho que consegue se converter demostrando enorme liberdade interior.
O perdão entrecruza-se entre a memória e o trabalho contextualizado na lógica do dom, da superabundância e não, simplesmente, na reciprocidade como a justiça. De fato, a noção da restituição, em confronto com a lógica da equivalência e da retribuição nos ajuda a entrar na lógica superabundância do perdão: "vou devolver quatro vezes mais". É na lógica da restituição que se entrecruzam a lógica da justiça e a lógica do perdão numa dinâmica do amor que não subestima a justiça e nem se opõe a ela. Como consequência, o perdão é inserido na lógica da superabundância, não sendo “normal”, nem normativo, mas excepcional e extraordinário.
Aceitando nosso passado e nossa realidade, estamos voltados e abertos ao nosso futuro no desejo de nos libertar daquilo que as experiências vividas produziram em nós, sobretudo, a culpa. O perdão a si mesmo não é decisão instantânea e imediata. Ao contrário, é um processo e um resultado vividos diuturnamente. É uma decisão de iniciar processos e de se abrir às novas possibilidades de vivenciar a amizade com o Senhor. É a misericórdia divina que nos torna capazes de romper com nosso passado a fim de nos abrirmos à possibilidade de nosso futuro. Deus condena o pecado, mas procura salvar o pecador ao ponto de procurá-lo nos mais profundos abismos humanos reconduzindo-o ao caminho da retidão, da generosidade e da superabundância.
Senhor, eu reconheço minhas limitações e tudo o que sou, mas desejo ver-Te para estar sempre em tua presença. Retira-me da baixeza dos abismos humanos que me deixam às margens não permitindo com que eu veja e sinta teu amor por mim. Liberta-me dos sentimentos que me aprisionam e das cegueiras que me impossibilitam ter nova visão de futuro. Faça-me confiar na iniciativa de teu amor, na generosidade de teu perdão e na gratuidade de tua salvação. Visita-me sempre e em todo lugar. Eu abro as portas da minha casa para que tu possas hospedar-se e fazer morada em mim.
LFCM.
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