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A obsessão pela vida alheia

  • Foto do escritor: Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
    Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
  • 26 de fev. de 2022
  • 4 min de leitura

Atualizado: 27 de fev. de 2022

Depois que Jesus desceu do monte com os seus discípulos, anunciou os princípios de “felicidade” em um lugar plano e deu a “regra de ouro” fundamental para eles. Ele continuou conduzindo um discurso pleno de imagens, breves sentenças e diversas palavras que tinham a intenção de formar a sua nova comunidade. Distinguir um seguidor de Jesus tornava-se o princípio fundamental da Sua proposta, pois Ele desejava que os seus seguidores pudessem dar passos maiores em relação ao bem e à prática religiosa. Pertencentes a uma técnica retórica oral, essas breves expressões eram conjugadas de forma dupla: dois cegos, o discípulo e o mestre, tu e teu irmão, duas árvores, dois homens e duas casas (cf. Lc 6,46-48).


Com fortes e ásperas palavras, na intenção de tocar os corações mais endurecidos, Jesus recordava o ensinamento fundamental da vida cristã: ser um discípulo bem formado como o mestre. O mestre é Jesus e aqueles que se deixavam instruir por ele, reconhecendo a autoridade do seu discurso e testemunho, eram considerados seus discípulos. Aquele que buscava caminhar sozinho foi comparado à imagem de um cego que guia outro cego. No texto de Lucas, Jesus não estava falando apenas para os “cegos” daquele tempo (fariseus, escribas, saduceus, etc.), como no texto de Mateus, mas para toda a comunidade. O evangelista nomeou esses discursos de “parábolas”.


Na comunidade nascente deveria haver problemas internos: alguns se considerando superiores aos outros, expressavam julgamentos e sentenças de fé somente para os outros e não para si mesmo. Em outras palavras, na comunidade existiam membros com a intenção de corrigir o comportamento dos outros, no entanto, sem conseguir ver e reconhecer seus próprios defeitos. A cegueira é resultado da não observação ao próprio coração: é mais fácil e cômodo ver e condenar os defeitos e os pecados alheios, do que conseguir ver os próprios com a mesma lucidez.

Quem está obcecado pela vida alheia sinaliza que esqueceu de ver a sua própria vida. E, paradoxalmente, quanto mais cegos para nós mesmos, mais fingimos enxergar o coração dos outros. Por outro lado, aqueles que cuidam do próprio coração, pouco a pouco desviam o olhar da vida alheia, tornam-se livres do julgamento e plenos de misericórdia.

Jesus, cheio de sabedoria, falava da hipocrisia. A hipocrisia toca todas as dimensões humanas, porém àquela religiosa era a mais escandalosa porque o “hipócrita religioso” fazia da sua contradição um heroísmo trágico. A hipocrisia religiosa revelava uma leitura esquizofrênica e falsa da prática da fé: a tentação da indulgência para consigo e da dureza para com os outros.

O mecanismo psicológico é evidente e simples: enquanto julgo e condeno o outro, me absolvo de comportamentos que podem ser ainda mais graves do que aqueles que estou denunciando. É a prática enganosa daqueles que condenando os outros, tornam-se inocentes.

Jesus era claro: “Por que vês o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho?”. O convite de Jesus era para a conversão, pois enxergando os próprios limites e pecados, o discípulo seria capaz de abandonar o julgamento do outro, aprendendo um novo jeito de enxergar. Dessa forma, Jesus ofereceu um critério: que todo o julgamento seja feito com os olhos de Deus. Todas as ações são consequências do encontro feito com Ele. Não se trata apenas de não julgar as situações, mas de vê-las com o olhar do Pai. Logo, uma religiosidade que não está imbuída de misericórdia, é mera hipocrisia.


Com a metáfora da árvore e do fruto, Jesus passou dos comportamentos que ofendiam a fraternidade para a raiz do comportamento, ou seja, o coração. É muito simples: bom fruto, boa árvore e boa raiz. O princípio do bem e do mal começa no coração do homem: “o homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração”. Jesus dizia que cada um age de acordo com sua própria natureza.

Se os “meus frutos” são de amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, mansidão, domínio próprio, significa que a “árvore” da minha vida tem raízes na misericórdia de Deus.

O versículo final do Evangelho de hoje relaciona palavra com coração. Jesus aproxima a relação entre o coração, a boca e as mãos. Os gestos, os discursos e as atitudes não são aleatórios, mas nascem daquilo que semeamos dentro de nós. Sempre, quando falamos, falamos de nós e a partir de nós mesmos. A palavra é uma forma de entrega explícita de nós ao outro: ela nos desnuda porque vem do coração e revela algo da nossa interioridade. De fato, todas as nossas palavras estão ligadas ao nosso corpo e alma, à nossa biografia e às feridas, à nossa afetividade e frustrações. Com isso, podem se tornar instrumentos de violência e de raiva e não de verdade.


O primeiro fruto de um coração misericordioso é uma palavra saudável, porque a “boca fala do que o coração está cheio”. A palavra revela o coração do homem. A relação coração-boca, ou seja, interno-externo, invisível-visível, silencioso-audível, manifesta-se pela palavra e, ao mesmo tempo, realidade espiritual e corporal. Dessa forma, Jesus deu aos seus discípulos a oportunidade de aprenderem um modo de falar menos condenatório, violento e hipócrita.

A qualidade do seguimento dos discípulos manifestava-se através da qualidade da comunicação deles, entre eles e com os outros.

As principais ações do homem começam na intenção de uma palavra boa e plena de sentimentos bons. Se a vida brota do coração e as más intenções também vêm do coração humano, a palavra que o homem pronuncia tem em si poder de dar vida ou morte. A força simbólica presente nas palavras que trazemos servem para edificar, revelando as boas intenções do coração, ou para maltratar, causando dor, destruição do humano e morte. A palavra que calunia, manipula e adula são exemplos de palavras que geram morte e não vida. Somente um coração pleno de Deus pode superar a hipocrisia e a condenação, fazendo com que as relações sejam mais saudáveis e equilibradas.


Senhor, ajuda-me a permanecer no teu discipulado. Quero ser bem formado, não para ser maior, mas para viver melhor a tua participação na minha vida e história. Ajuda-me a desviar o olhar da vida alheia para tornar-me livre do julgamento e pleno de misericórdia. Que a aceitação dos meus limites e o reconhecimento dos meus pecados faça-me menos hipócrita e violento. Ensina-me a unir coração, boca e mãos: palavras, gestos e atitudes. Liberta-me de palavras doentes e causadoras de morte e de destruição. Afaste-me da ira, discórdia e divisão. Ao meu corpo daí saúde e, ao meu coração, trazei paz e libertação.


LFCM.

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1 Comment


Marcia Severo
Marcia Severo
Feb 27, 2022

Olá Frei, quanto ainda tenho q aprender a não julgar. Cuidar mais do meu coração para viver mais a Misericórdia. Gratidão por suas palavras. Paz e Bem🙏🏽🙏🏿🙏🏻

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