A paralisia existencial
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
- 10 de jun. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 1 de jul. de 2023
A nossa caminhada de fé acontece através de tempos ordinários e extraordinários. Após a grandiosidade dos eventos pascais e da beleza dos mistérios de um Deus tão próximo, retomamos o “tempo comum” da liturgia dominical e continuamos com o Evangelho de Mateus. Este tempo é marcado pela leitura do chamado dos primeiros discípulos e, com as bem-aventuranças, é marcado pela mudança de perspectiva dos ensinamentos da tradição da época de Jesus. Após o longo discurso das bem-aventuranças, vemos o desejo que Jesus tem de implementar o Reino de Deus considerando a árdua missão dos seus discípulos.
O sermão da montanha, no qual está inserido os versículos das bem-aventuranças, ocupa três capítulos do evangelista Mateus. Distinguir um seguidor de Jesus tornava-se o princípio fundamental da proposta evangélica, pois Ele desejava que seus seguidores pudessem dar passos maiores em relação ao amor e ao bem. As afirmações de Jesus colocavam os discípulos não apenas na busca de um modo de ser, mas os faziam aceitar um estilo de vida diferente. Ao indicar a terra e o mundo, não limitando os espaços, Jesus apresentava perspectivas abertas e amplas: sal e luz, a nova justiça, amor aos inimigos, a oração do pai-nosso, os lírios do campo, a regra de ouro, a casa construída sobre a rocha etc.
Jesus percorria todas as cidades e povoados ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando toda enfermidade e moléstia. Ao ver as multidões cansadas e abatidas, enchia-se de compaixão. Esse sentimento de Jesus é uma característica essencial da misericórdia de Deus, pois era revestido não somente de sentir, mas de fazer algo por elas.
A compaixão do Mestre era mais efetiva do que afetiva. Segundo Jesus e na lógica do Evangelho, sair de si e perceber o outro é o primeiro movimento para herdar a vida eterna dando continuidade ao Reino de Deus. Com efeito, sabendo Ele que não conseguiria chegar fisicamente em todos os lugares, chamou doze discípulos e deu-lhes autoridade contra as forças opressoras do mal.
O Evangelho de hoje mostra o chamado de um dos discípulos: Mateus. Antes desse chamado, o próprio evangelista relata a cura de um paralítico apresentado pela comunidade. A narrativa diz que o homem doente vivia deitado numa maca e que o perdão dos seus pecados o curou e lhe deu a disposição de que necessitava para seguir seu caminho. Após o relato dessa cura, o evangelista escreve que Mateus vivia sentado num posto de arrecadação. Ele era cobrador de impostos e tal como o homem paralítico não fazia nada, a não ser cobrar os impostos. Ele estava apegado à condição de cobrador de impostos e estava preso numa profissão que o tornava desprezível aos olhos de todos. O paralítico vivia deitado na sua maca. Mateus vivia sentado na sua cadeira.
A conexão dos dois personagens não é um fato irrelevante. Se a paralisia do primeiro era física, a do outro era existencial. Por força da natureza ou por força das escolhas, ambos eram obrigados a permanecerem num estado de vida paralisados. Somente a autoridade da palavra de Jesus poderia tirá-los daquela situação. Jesus disse para o paralítico físico: “levanta-te, pega a sua maca e vai para a tua casa”. E para Mateus, disse: “segue-me”. O primeiro se levantou e seguiu para a sua casa. O segundo se levantou e seguiu Jesus.
O movimento de “levantar” após a autoridade da voz de Jesus dependeu dos dois personagens. Era preciso que ambos abrissem espaço para Jesus. O paralítico deixou a dependência dos outros, enquanto Mateus deixou a dependência do imperador romano. Sair de nós mesmos e dos nossos desejos autorreferenciais nos permite entender e acreditar que em situações de morte seremos encontrados pela voz salvadora de Jesus.
Um outro elemento importante no texto evangélico é o “olhar” de Jesus. Antes do chamado para o seguimento, na caminhada por todas as partes, Jesus viu um homem chamado Mateus. Foi a diferença do olhar de Jesus que modificou o coração de Mateus. Nem tanto o convite para o seguimento, mas o olhar. Todos os olhavam como cobrador de impostos, opressor do estado e “paralítico” da Lei. Entretanto, Jesus o viu como um homem, uma pessoa oprimida e dependente da compaixão. Deus olhou para a humanidade de Mateus e ofereceu-lhe uma nova proposta de vida. Seu olhar de amor foi tão eficaz que desceu ao mais profundo da condição de Mateus para salvá-lo. Ainda, Jesus foi capaz de sentar-se à mesa com os pecadores e com tantos outros cobradores de impostos gerando incômodos e questionamentos nos corações farisaicos.
Durante sua vida e com um profundo olhar, Jesus olhando para os discípulos os convida a segui-lo. Vendo os pecadores, oferece-lhes perdão. Compadecendo-se dos enfermos, oferece-lhes cura e nova vida. Atendendo aos excluídos, oferece-lhes acolhida e ternura. Isso tudo Ele fazia para ensinar-lhes o fundamento da sua vinda: “aqueles que têm saúde não precisam de médico, mas sim os doentes”. Os marcados pela rejeição encontram acolhida no olhar generoso e transformador de Jesus.
Os olhos de Jesus souberam ver além das aparências. Eles viram nova possibilidade para o paralítico e viram a possibilidade de um publicano se tornar um discípulo, um seguidor. Ao sentirem-se olhados de outra maneira, tanto o paralítico quanto o publicano colocaram-se a caminho e tornaram-se dinâmicos, abandonando o passado e assumindo o protagonismo da própria vida. Num primeiro momento, sob o olhar de Jesus, ambos não encontraram burocracias doutrinais e nem regras exigentes, mas a possibilidade de se levantarem e caminharem.
A voz, o olhar e a presença de Jesus ofereceram a eles um novo tempo para que fossem capazes de deixarem a “maca” e a “cadeira” a fim de caminharem ao encontro da nova vida. Com o olhar provocador, Jesus arrancou o paralítico da sua maca e retirou Mateus da sua cadeira.
A nossa voz e o nosso olhar são características pessoais e únicas. Também, o modo como nos colocamos no meio das pessoas. Não há neutralidade na forma como nos fazemos presentes, como olhamos e como falamos. Isso mostra bem o quanto somos capazes de ver o olhar de Jesus, de ouvir a sua voz e de sentir a sua presença. Entretanto, às vezes, nossa voz manifesta arrogância, ironia e desprezo e o nosso olhar revela condenação, rejeição e malícia. Outras vezes, nossa presença gera incômodos e dependência. A autoridade e o protagonismo de Jesus tem muito a nos ensinar: onde o Mestre chegava havia paz, sua voz causava libertações, seu olhar transformava vidas. Seu desejar misericórdia era manifestado não somente por suas palavras, mas através de práticas transformadoras.
Senhor, ajuda-me a “levantar” das minhas paralisias dependentes e das minhas passividades autorreferencias. Faça-me um seguidor verdadeiro com teus gestos e com tua voz salvadora. Ensina-me a “olhar” com misericórdia, acolhimento e amor para todos. Permita com que minha voz, a exemplo da tua, seja sempre de cura e de libertação. Ajuda-me ser presença de paz, de perdão e de luz.
LFCM.
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