A anônima pergunta
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
- 30 de jul. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 27 de ago. de 2022
O Evangelho de hoje tem início com a cena de um homem, sem nome especificado, que levantando-se na multidão, pede a Jesus para resolver uma questão jurídica sobre a herança de sua família. Este texto é presente apenas no Evangelho de Lucas, não encontrando nada paralelo com os outros evangelistas (sinóticos). Jesus recorda aos seus interlocutores que a vida não depende do que possuímos e sim do quanto somos capazes de dar. A existência cristã pode ser avaliada a partir da posse ou da doação.
Jesus se recusa a intervir em uma disputa entre irmãos por questões de herança: "Homem, quem me encarregou de julgar ou de dividir vossos bens?" Diante da inevitável e recorrente divisão de bens pelas quais passam todas as famílias quando se têm heranças, Jesus se cala, pois esta não era a missão enviada pelo Pai. Não respondendo ao anônimo pedido, Jesus se recusa a agir como mediador e juiz em situações de injustiças, interesses mesquinhos e desavenças familiares. Mesmo não dando uma resposta clara e objetiva, Ele constrói uma parábola para que o anônimo homem analisasse o interesse do seu coração.
Naquela pergunta vinda da grandiosa multidão, Jesus percebe que o interesse não estava em querer fazer justiça ou correta divisão dos bens, mas na avidez gananciosa de possuir todos os bens. Dando uma resposta irônica, Ele constrói a "parábola do rico insensato". A parábola tem no centro um “homem rico” (12,16) e “louco” (12,20). A loucura está no contraste existente entre a projeção que o homem rico faz de si mesmo e naquilo que Deus lhe promete.
A tentativa de Jesus é ir ao essencial e desmascarar a intenção dos dois irmãos. Eles se agarram na ideia de que a felicidade se alcança através daquilo que possuem e não naquilo que são. Ao invés de intervir neste caso, Jesus escolhe ir à raiz do problema: “Atenção! Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens”.
A resposta de Jesus ao seu anônimo interlocutor sai do nível externo das disputas e entra no nível interno do coração: ele adverte a todos contra a ganância, a avidez e o desejo de possuir. A ganância vem do coração (cf. Mc 7,22) e é comparável à uma idolatria (cf. Col 3,5). O homem da parábola é rico de coisas, mas continua sendo uma pessoa sozinha. Ele não pensa em construir nada para ninguém. Tudo o que fez e pensou foi para a idolatria de si mesmo. Ele é rico de coisas, mas pobre de relações: vive na solidão e pensa somente em si mesmo. Vive no meio das pessoas, mas não consegue enxergar ninguém. Todo o seu interesse está centrado nele mesmo: “Meu caro, tu tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, aproveita!”. Os verbos no imperativo (descansa, come, bebe e aproveita) relevam o senhorio do homem rico sobre sua própria vida. Os outros verbos no futuro (vou derrubar, vou construir, vou guardar) indicam o acúmulo de bens num futuro próximo. Por fim, o pronome possessivo "meu" (meus celeiros, meu trigo, meus bens) acenam para o egoísmo do homem. Em seu projeto de vida, o “eu” é o único sujeito da história. Ele não faz a experiência do "nosso".
O homem rico acredita possuir: o tempo, o futuro, a vida. O binômio riqueza-loucura se expressa de tal forma que a “plenitude da riqueza" camufla o vazio desolador, a dolorosa falta de inteligência e sabedoria. A falta de inteligência torna-se a falta de relações e recusa de fraternidade porque o horizonte interior e existencial do rico é completamente absorvido pelo seu próprio ego: ele “enriquece para si” (12,20) esquecendo-se de Deus e dos irmãos. Os bens são o ídolo que cria o vazio ao seu redor e tudo desumaniza. Afinal, Ele não é mais um ser humano, mas é uma coisa. É uma máquina que produz e faz cálculos. É um registrador de contas e de bens adquiridos. Ao desumanizar-se perde o equilíbrio interior, a lucidez e o sentido da vida.
São três as considerações que o rico coloca diante de si mesmo: os grandes bens acumulados, os muitos anos que esses bens parecem assegurar-lhe, e a terceira delas, a tranquilidade e o bem-estar exagerado (cf. v. 19). Porém, a Palavra que Deus lhe dirige cancela estes projetos. Ao invés dos “muitos anos”, Deus indica o imediatismo “desta noite; esta noite morrerás”; em vez do “gozo da vida”, Ele apresenta-lhe a “prestação de contas da vida”. Os muitos bens acumulados foram cobertos pelo sarcasmo da pergunta: “E o que preparaste, de quem será?” (v. 20). É nesta oposição que se justifica o apelativo do “insensato”. Tudo para ele parece ser concreto, mas não passa de uma fantasia de si mesmo. A loucura e a insensatez consistem no fato de negar a Deus e não enxergar nada além Dele.
A parábola é concluída com eficácia singular: “Assim acontece com quem ajunta tesouros para si mesmo, mas não é rico diante de Deus". (v. 21). É uma advertência que revela o horizonte para o qual todos somos chamados a olhar e a viver porque a vida do homem rico não é estranha aos nossos desejos, sonhos e projetos.
Ser rico diante de Deus é ter um olhar que vai além da realidade de si mesmo e um coração que habita outros espaços. É procurar pelos bens que possuem verdadeiro valor: justiça, solidariedade, acolhimento, fraternidade, generosidade, comunhão e paz. Tudo aquilo que favorece a dignidade humana. Ser rico aos olhos de Deus é orientar-se para um estilo de vida evangélico em que amo a Deus quando sou capaz de amor ao próximo. A ganância pelos bens, a avidez pelas posses, o desejo irrefreável pelo poder, não satisfaz o coração. Pelo contrário, provoca egoísmo, indiferença e insatisfação.
O Cristo foi muito duro com os ricos e nunca teve sucesso com eles. Ele curou leprosos, libertou os possuídos, restaurou a visão aos cegos, mas não conseguiu nada com o jovem rico. Ele o amou até o fim, mas nada pode fazer. O homem rico voltou para a sua vida porque possuía muitas coisas e não estava disposto a se livrar de seus sentimentos egoístas. Não se tratava de doar todos os seus bens aos pobres, mas de ser livre deles. O desafio do insucesso de Jesus com os ricos era a liberdade. Os ricos não conseguiam ser homens livres, mas viviam agarrados nas suas posses e bens.
A parábola deste domingo é desconfortável para aqueles que possuem riqueza. O rico agricultor não foi condenado porque produziu muitos bens, trabalhou e se comprometeu, mas porque “acumulou para si” e “não foi enriquecido diante de Deus” (v.21). Nisto consiste os dois males acometidos pela cegueira dos bens. A riqueza não é um mal. O cristão não deve viver uma vida miserável. São incompatíveis com o Evangelho a ganância, o desejo insaciável de posse, os sentimentos e pensamentos de quem, como o agricultor da parábola, repete obsessivamente o adjetivo: “meu”. Quando formos capazes de não vivenciarmos o “meu” e o “seu” e vivenciarmos o “nosso”, a vida será louvável e abundante. Embora, somos inclinados a pensar no “meu”, Jesus nos ensina, nos obriga e nos faz ousar reconhecer o “nosso”, pois a riqueza partilhada é sinal da benção de Deus.
Senhor, ensina-me a liberdade para não escolher a posse, mas a doação. Dá-me lucidez a fim de desejar o interesse do meu coração. Permita-me desvincular da ideia de acreditar que "sou mais o que tenho do que aquilo que sou". Faz-me escolher relações que me tornam ser humano não permitindo que a riqueza e a solidão me objetifique. Torna-me um homem rico diante de Deus, desejoso de transformar a "minha" em "nossa riqueza de cada dia".
LFCM.
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