As profundezas do nosso mar
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
- 4 de fev. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 11 de fev. de 2022
O evangelista Lucas relata o episódio acontecido na margem do lago de Genesaré. Uma grande multidão estava ao redor de Jesus na margem do lago. O Mestre não falou apenas dos púlpitos dos santuários sagrados, mas nos lugares quotidianos da vida. Ele não pregou Sua Palavra apenas na liturgia do sábado e nos ambientes religiosos, mas também, na barca vazia e simples de um pescador da Galileia. Os acontecimentos narrados nos Evangelhos em torno de “lago” ou “mar”, nos fazem atentar para estes espaços naturais nos quais há acontecimentos fortes e de profunda teologia.
Jesus entrou delicadamente na vida de Pedro e dirigiu-lhe um pedido não excessivo. Encontrando-o numa manhã amarga e cheia de vergonha, subindo no barco, pediu-lhe que se afastasse um pouco da margem a fim de que pudesse melhor ensinar-lhes. O humor daqueles pescadores não estava bem, pois não haviam tido uma noite de pesca frutífera. Estarem na superfície de mãos vazias significava um tremendo fracasso.
Terminando de falar com a multidão, Jesus passou do anúncio à ação: “Avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes para a pesca”. O apóstolo Pedro, homem experiente na arte da pescar e dos mistérios do mar, tentou desconsiderar a ordem de Jesus: “Mestre, nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos”. Ele sabia que o horário não era adequado para a pesca: “Se nada apanhamos de noite, muito menos apanharemos de dia”. Entretanto, confiando e soltando as cordas que prendiam o barco na margem: “porque Tu o dizes, lançarei as redes”.
Ele é a primeira pessoa que, no início da vida pública de Jesus, manifestou sua fé e confiança nas palavras do Mestre. Embora, correndo novamente o risco de fracassar, se expôs e não temeu desbravar o mar. A lógica humana lhe dizia para desistir. Contudo, ele preferiu obedecer sendo consciente de que a Palavra de Jesus poderia realizar o impossível, pois já havia experimentado quando viu sua sogra ser curada.
O resultado é surpreendente. O evangelista destacou vários detalhes: a enorme quantidade de peixes, as redes prestes a se romper, a necessidade da ajuda dos companheiros e os barcos que corriam o risco de afundar. Vendo o acontecido, Pedro reconheceu que uma pescaria comum tornou-se uma manifestação teológica reveladora da autoridade de Jesus. O fato quotidiano transformou-se num profundo confronto existencial. O maior milagre feito por Jesus para Simão e os demais pescadores desiludidos e cansados, não foi a rede cheia de peixes, mas o fato de os ter ajudado a não ser vítimas da frustração, da desilusão e do fracasso.
O encontro com Jesus e seu pedido para ir às águas profundas revela a consciência de Pedro. Quanto mais Pedro se aproxima do Senhor, percebe-se frágil e pecador. O momento de máxima proximidade é o momento de consciência de estar longe do Senhor: “Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador!”. Dessa forma, no início de seu seguimento a Cristo, Pedro revela-se obediente à Palavra do Cristo. Ao mesmo tempo, reconhece sua fragilidade para permanecer com Ele. Com esse reconhecimento, Jesus revela a Pedro um projeto diferente daquele escolhido para si: “De hoje em diante tu serás pescador de homens”. A proposta de Jesus é a vivência da própria identidade, mas de uma maneira nova: a serviço do Reino. Os discípulos continuam pescadores, mas agora de homens.
O barco representa a comunidade cristã. A comunidade é o lugar privilegiado de onde se deve esperar a voz do Mestre. O anúncio da Palavra é seguido pela ação. Por ordem de Jesus, o barco deve avançar e aventurar-se nas profundas águas do mar. É na aventura do grandioso mar que os discípulos são convidados a lançar suas redes e pescar. Essa imagem indica que a comunidade cristã, animada pela Boa-Notícia, deve sair da margem e ir para o mar aberto, mesmo deparando-se com o novo e surpreendida pelos desafios. Dessa maneira, é preciso acolher as Palavras de Jesus e soltar as cordas que nos prendem à margem. Enquanto comunidade de fé, somos tentados a querer ficar na superfície de uma Igreja mesquinha, míope e pequena. Entretanto, a autoridade de Jesus nos convida a avançar profundamente para experimentar a generosidade do projeto salvífico de Deus.
Jesus, pede a Pedro para não permanecer na superfície. Faz com que ele volte no mesmo lugar em que experimentou o fracasso da noite infrutífera de pesca. Ir mais para o fundo, não ficar na superfície e encontrar-se com os seus próprios limites é o processo estabelecido pelo Mestre que faz de Pedro um homem transfigurado pela força da Palavra. O convite de Jesus permanece para nós: é necessário voltarmos às profundezas do nosso mar a fim de nos tornarmos testemunhas da bondade e da misericórdia dando um novo sentido à nossa existência, que corre o risco de se nivelar sobre si mesma e sobre nossas próprias emoções.
É preciso voltar ao lugar do nosso fracasso, pois foi lá que Pedro experimentou o amor e o poder de Jesus Cristo. Muitas são as tentações cotidianas que nos dizem que o fato da noite anterior, nos serve como garantia do sucessivo acontecimento: “quem já se feriu presta mais atenção”. Não voltar ao fundo do mar e arriscar-se numa outra pesca é desejo de controlar as situações que geram fracassos e servem apenas como bloqueio para as novas possibilidades. No entanto, se não voltar, não se poderá experimentar a força maior de um novo amor e, então, se afundará na superfície do tédio da margem, escondido atrás de uma vida autorreferencial, vazia e sem mistério. Portanto, temos de ter a coragem de voltar a esses lugares que marcaram nossa história a fim de compreendê-los à luz da presença do Senhor, pois dessa maneira, seremos preenchidos da graça, da misericórdia e do poder Daquele que tudo pode mudar em nós.
Senhor, ajuda-me compreender minhas experiências de fracasso à luz da tua presença. Desejo aprender voltar aos lugares de fracasso a fim de experimentar tua misericórdia e teu poder. Não permita que meus insucessos façam-me permanecer nas margens e nas superfícies. Quero lançar-me nas profundezas do meu mar para fazer a experiência profunda do teu amor. Acompanha-me neste processo de avanço para as águas profundas sem temer, controlar ou racionalizar o teu mistério.
Gratidão Frei por sempre me enviar palavras de coragem. Preciso exercitar essa coragem diariamente, peço sempre a Boa Mãe para me ajudar. Paz e Bem. 🙏🏽🙏🏿🙏🏻🌻
O quanto a Palavra de Deus toca a nossa realidade e nos faz perceber que não somos autossuficientes. Creio que esse texto pôde nos comunicar essa verdade. Aproximando-nos da Palavra revelada, vemos as nossas fragilidades e deixamos que a graça da Boa-Nova seja eficaz em nossa vida concreta.