O itinerário simbólico do tempo da Quaresma evoca dois momentos na História da Salvação: os quarenta anos que o povo de Israel viveu no deserto após a libertação da escravidão no Egito e os quarenta dias que Jesus passou no deserto antes de iniciar sua vida pública. Quarenta são os anos passados no deserto e que simbolizam a dispersão, a infidelidade do povo e a fidelidade de Deus. Quarenta são os dias de Jesus no deserto marcando a passagem para o início da sua vida pública e para a decisão da sua identidade. O deslocamento de Jesus ao deserto está em profunda sintonia com a experiência vivida pelo povo judeu.
Seja para o povo que viveu 40 anos, como para Jesus que ficou 40 dias, o deserto nunca foi um lugar agradável e consolador. Para o povo, atravessar o deserto foi uma experiência exigente e provocatória, pois eles foram colocados em contato direto com a missão de ser “povo de Deus”, tendo que aprender a confiar mais N'Ele pois estavam longe da segurança do Egito. Para Jesus, o deserto foi um espaço de tentação, de aceitação e de reconhecimento da sua missão. Prova disso é que o próprio Espírito que O conduziu para este espaço após seu batismo no Jordão. Ali Ele foi colocado diante do projeto de ser “Filho de Deus”. Nestes processos, o mal manifestou-se para oferecer possibilidades diferentes do projeto divino, pois quanto mais os anos e os dias passavam, mais o deserto revelava a carência, a fragilidade, a fome, o medo e os obstáculos. O mal oferecia fuga, desistência, angústia e murmuração para os fazer distanciar-se da realidade interior e da autenticidade da missão. Contudo, a ação do Espírito agia de maneira contrária à proposta maligna, curando toda forma de alienação, afastando todo o desejo de fuga, conduzindo ao coração da realidade e à profundeza das intenções.
A simbologia do número “quarenta” é inconcebível sem uma motivação final, um objetivo ou um ponto de chegada. A motivação quaresmal é uma motivação pascal na qual recordaremos que Cristo venceu a morte, destruiu o pecado e deu-nos vida com a sua vida. A melhor maneira de entender o percurso quaresmal é à luz da Páscoa. Reduzir a experiência quaresmal numa mera prática ascética vivenciada apenas em certas épocas do ano é fazer dessa experiência apenas tradição, hábito, convenção religiosa-social e não proposta de salvação.
Esses quarenta dias devem nos servir para treinar nosso “Espírito” a ser mais silencioso, a levar mais a sério a oração, a dominar alguns apetites desmedidos-compulsivos e para enxergar o irmão necessitado que está do nosso lado. Um treinamento destinado ao encontro de Jesus morto, sepultado e ressuscitado que deve nos ensinar a viver com e como o Ressuscitado.
O texto de Lucas sobre as tentações de Jesus foi colocado após o episódio do Batismo e antes do início do ministério de Jesus em Nazaré. Essa posição nos oferece uma chave de leitura para o entendimento da missão de Jesus e pode ser inserida no contexto do conteúdo programático dessa mesma missão. Antes de iniciá-la, Jesus é guiado pelo Espírito ao deserto a fim de decidir que tipo de Messias Ele queria ser para cumprir sua missão salvífica e para elaborar a melhor estratégia. No entanto, pelo tentador, foi impelido a escolher caminhos diferentes dos desejados pelo Pai.
O diabo lançou para Jesus três propostas tentadoras: obedecer à fome, ter o mundo em suas próprias mãos e controlar o próprio Deus. O inimigo tentou induzir com que Jesus usasse dos seus privilégios, em particular, daquele de ser o Filho de Deus. Jesus superando as três tentações mostrou que para ser Filho de Deus é necessário dizer não à fome, renunciar o governo do mundo e não colocar o próprio Deus à prova.
As três provações as quais Jesus foi submetido no deserto são semelhantes às que Israel suportou no deserto e são as mesmas tentações dos homens de todos os tempos: comer, possuir, dominar.
O diabo tentou enganar Jesus com três condições: “se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão”; “se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu”; “se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo!”. O diabo tentou fazer com que Jesus duvidasse da imaginação salvífica do Pai através da avidez da posse, da glória humana e da instrumentalização de Deus. Ele ofereceu a Jesus um caminho mais fácil, aquele anunciado por alguns dos profetas e por João: um Messias dominador, triunfante, forte e aclamado por todos. De fato, era mais conveniente ser um Messias imaginado pelo povo do que desejado por Deus. Era melhor triunfar pelo poder do que morrer numa cruz. Jesus não cedeu à tentação do poder, não se deixou levar pelo delírio da onipotência e pelo fascínio perverso de controlar “tudo”. As tentações experimentadas no deserto não são propriamente de ordem moral e sim maneiras falsas de entender e viver a missão salvífica.
Jesus manteve-se firme e decidido. A forma como se relacionou com as tentações construiu a sua identidade. Seu compromisso gerou palavra e escolha, capacidade de dizer sim ou não, de tomar decisões por sim mesmo. Neste sentido, Ele refutou todo triunfalismo, todo o espetáculo e toda instrumentalização de Deus. Escolheu o contrário da proposta tentadora: devemos nos alimentar da Palavra e sermos livres de todos os compromissos mundanos. O Nazareno procurava pessoas que queriam amar a Deus pelo que Ele é, não por aquilo que Ele podia dar ou fazer. O messianismo de Cristo se delineava pelo amor e pela partilha, na força da Palavra e na autenticidade, na revelação do rosto misericordioso do Pai e na oferta da sua vida para salvar a todos. Jesus procurava relações filiais e não de servidão, afetos sinceros e não respeitos religiosos-temporais. Vivenciando plenamente a sua humanidade, o Cristo revelou que sua missão é a liberdade de aceitar e desejar a vontade de Deus.
O diabo no deserto não conseguiu persuadir Jesus do projeto salvífico, por isso, no momento oportuno da cruz, quando a cruz não será mais um projeto e sim um fato, a tentação retornará. No Getsêmani, ela será mais cruel: os discípulos escolhidos O abandonaram e dormiram, um dos discípulos o traiu e o vendeu por poucas moedas, o projeto parecia estar falido e o Pai parecia ter desistido de tudo e ter definitivamente se calado. É no momento da total solidão que Jesus será chamado a decidir pela lógica do morrer para fazer viver a todos.
Senhor, ver o modo como venceste as tentações anima o meu percurso de fé e de confiança na tua promessa. Ensina-me a possuir a autoridade da Palavra e a saber escolher e desejar o projeto de Deus. Educa-me a não temer os desertos da minha vida e a não fugir da solidão. Ajuda-me não ceder as tentação das condições do "se", a renunciar a ambição de governar o mundo e a abdicar de colocar à prova o próprio Deus. Dai-me a tua liberdade para não deixar-me levar pelo delírio da onipotência e pelo fascínio perverso de resolver e controlar “tudo”. Desejo seguir-te pelo que és e não por aquilo que podes realizar ou dar-me.
LFCM.
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