As tempestades existenciais
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
- 22 de jun. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 5 de jul. de 2024
O episódio que Marcos narra, no Evangelho de hoje, passa-se durante uma travessia. Jesus está junto do Mar da Galileia, acabou de apresentar à multidão o anúncio sobre o Reino de Deus. Ao terminar o dia, decide passar à outra margem. A narrativa apresenta uma profunda densidade simbólica: o barco, a travessia do mar, os outros barcos, a outra margem, as ondas, a escuridão da noite, o sono de Jesus, o vento, a tempestade e o medo. Todos esses elementos são bastante frequentes no texto bíblico e apresentam significativas mensagens teológicas. O mar e a noite definem uma realidade com muitas dificuldades e sombras. O objetivo do texto é revelar a identidade de Jesus. A narrativa de Marcos supera as versões de Mateus e de Lucas que transformam o acontecimento em parábola.
Para Marcos, é Jesus quem convida os discípulos a subirem na barca: “Vamos para a outra margem”. É Jesus quem toma a iniciativa daquela estranha travessia. No entanto, Lucas e Mateus dizem que Jesus entrou no barco (Mt 8,23; Lc 8,22). Durante a tempestade, Marcos relata que os discípulos cobram a Jesus uma ação: “Mestre, estamos perecendo e tu não te importas?”. Diante do medo e do desespero, Ele torna-se um Mestre comum, não sendo reconhecido como Senhor. Ao Cristo cabe a sabedoria para ajudá-los diante da força do mar. Eles não reconhecem Sua divindade. Estão desiludidos, mas a decepção se torna a oportunidade de começarem novamente a acreditar. Entretanto, em Lucas e em Mateus, de modo reverente, os discípulos professam a fé, dizendo: “Senhor, Senhor” e “Senhor, salva-nos, estamos perdidos”.
Na mentalidade judaica, o “mar” era uma realidade assustadora, desordenada, onde residiam os poderes caóticos que o homem não conseguia dominar. Todavia, é importante recordar que os discípulos de Jesus eram pescadores e estavam acostumados a passar por situações difíceis no mar. Porém, durante aquela travessia se desesperaram com o poder do mar e sentiram medo da força do vento. Tomados pelo desespero, perceberam que Jesus dormia.
Mais uma vez, o evangelista revelou o lado humano de Jesus: “Jesus estava na parte de trás, dormindo sobre um travesseiro”. Um Cristo dormindo em uma tempestade é a coisa mais forte e inimaginável que podemos observar. Nas tempestades, sempre imaginamos que Cristo seja o salvador, a solução e o porto seguro. Não dá para imaginar Cristo dormindo, parecendo não se importar com a situação daqueles apavorados discípulos. O sono tranquilo de Jesus podia significar a paz e a serenidade que Ele pretendia transmitir.
O mar agitado revelava que os discípulos estavam com as emoções descontroladas, passando por momentos delicados. Eles estavam atravessando por uma etapa fundamental no discipulado e na descoberta da identidade humana-divina de Jesus. Os discípulos recorreram ao Senhor para salvá-los e demostraram que acreditavam Nele, mas foram repreendidos porque não tinham fé.
A repreensão de Jesus para com seus discípulos tem mais do que uma explicação devocional. O problema deles foi recordar de Jesus apenas quando se encontravam numa situação desesperadora.
A comunidade de Jesus devia estar consciente de que Ele estava presente e nenhuma tempestade existencial podia impedir os discípulos de concretizar no mundo a missão do amor. O evangelista quer recordar que a fé deve ser um constante diálogo com Cristo e uma capacidade de acreditar na promessa de Sua presença. Dessa forma, depois que o vento parou, houve uma grande calmaria. Ao invés deles se alegrarem, “ficaram cheios de grande medo”, e começaram a perguntar pela identidade de Jesus: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?”. Eles passaram do medo da tempestade para o medo da identidade de Jesus. Não se tratava de um medo ou de um susto que se apoderava de quem se deparava com um personagem diferente, mas da admiração de quem reconhecia uma força potente e uma presença significativa capaz de dominar as forças que ameaçavam à vida.
Diante do poder de Cristo não cabe uma descrição teórica ou respostas fáceis, mas perguntas, dúvidas, interrogações e surpresas. A fé não era um simples aceitar sem questionar o poder da presença. Ela deve ser muito mais do que uma mera aceitação. A fé não pode ser certeza racional, mas deve ser força viva que se move dentro de nós, acompanhando-nos em momentos de fragilidade da existência.
Nas travessias da nossa vida passamos por desalentos e pela solidão. Todos compartilhamos, para além do tempo e do espaço, a bela e frágil natureza humana. O maior perigo é deixar-nos determinar pelo medo, pela insegurança e pelo desespero. O verdadeiro desafio não está na tempestade, mas na permanência do medo quando ela finda.
Jesus nos convida a atravessar para a outra margem. Passar para a outra margem implica deslocamentos para sairmos da margem rotineira e conhecida. A vida deve ser atravessada. Na existência não serve esperar a "tempestade" passar, mas é preciso aprender a "dançar na chuva". Não podemos ficar parados, mesmo diante daquilo que nos aprisiona ou assusta. À semelhança dos discípulos, somos continuamente surpreendidos por tempestades humanas existenciais. Essas tempestades nos possibilitam descobrir nossas vulnerabilidades e nossas inseguranças. Cristo não nos salva das tempestades, mas nas tempestades. Às vezes, em nossas travessias existenciais podemos sentir a ausência de Deus, tendo a impressão de que Ele continua a dormir, não ouvindo o grito de nossos lamentos. Entretanto, a presença silenciosa de Deus deve nos recordar que Ele sempre é capaz de acalmar o mar e parar o vento de nossos medos e desesperos.
Senhor, dai-me fé na Tua presença, mais do que nos meus medos. Ajuda-me a atravessar as tempestades da existência humana. Conceda-me a graça de descobrir minha força interior para acalmar o mar e o vento de meus medos. Ensina-me a ser discípulo, crescendo em humanidade e admirando Teu poder e potência.
Bom Dia Frei. Minha gratidão será para sempre por me enviar essas palavras q me ensinam a aceitar minhas tempestades como uma aprendizagem de como devo enfrentá-las. Paz e Bem🙏🏾🙏🏿🙏🏽