top of page

Converter, para que?

Foto do escritor: Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv. Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.

Dois sentimentos estão presentes no núcleo do tempo quaresmal: o gentil convite à conversão e o fazer penitência. Conversão e penitência, na forma radical de ambas as palavras, apresentam o mesmo significado. Não são dois caminhos ou duas opções diferenciadas, mas um único caminho e um único sentido.

Então, relacionando essas duas palavras, iniciei a minha reflexão quaresmal. Porém, ao mesmo tempo, me fiz duas perguntas: Converter de que? E, fazer penitência para que?

Às vezes, tenho a sensação de que o nosso fazer penitência não gira em torno da conversão. Como sabemos, conversão significa “metanoia”. A intenção de mudar o nosso modo de ver, sobretudo, na relação com Deus, consigo mesmo e com os outros. Ao pensar na “metanoia” deparei-me com a palavra “paranoia”, que em geral, significa a opção irreal e delirante de ver as coisas e a preferência por repetições maníacas (fora de si).

Nesse sentido, tenho a impressão de que o nosso fazer penitência tem sido mais paranoico do que metanoico. Tem sido mais para fora do que para dentro. Em outras palavras, podemos encontrar algumas opções penitenciais bem irreais e paranoicas.

Em seguida, imaginei uma segunda coisa: que esse ano não temos tanta necessidade da quaresma. Aliás, vivemos em uma quarentena. Está fazendo um ano que a nossa vida mudou completamente. Um ano que estamos sem encontro, sem relação e sem convívio. Um ano que tem suscitado dentro de nós tantas crises e dores. Um ano que as notícias nos assustam, que nos vemos chorando por um amigo ou por familiar que partiu. Um ano que estamos tentando nos reorganizar. Um ano de deserto. Uma coisa precisa ser bem clara para nós: a vida litúrgica-sacramental nunca pode ser uma vida paralela à vida real.


Por conseguinte, feita essas duas considerações, podemos voltar às nossas questões iniciais. Precisamos nos libertar de algumas visões irreais e supérfluas do tempo quaresmal, em particular, do converter e do fazer penitência. É preciso conjugar de forma diferente os nossos objetivos.


O converter quaresmal não é meramente uma preparação para a Páscoa, mas é um aprendizado para viver com e como o Ressuscitado. O converter quaresmal serve para educar a nossa consciência e o nosso corpo.

A consciência que precisa se despertar para a vida e o corpo que necessita ter uma postura reta para caminhar com e como o Ressuscitado. É, desse jeito, que renunciaremos a uma forma de olhar pessimista, a um caminhar cabisbaixo e a uma vida centrada em si mesmo.

Nesse sentido, o converter quaresmal tem por objeto o encontro com a vida, com o amor e com a salvação; e o fazer penitência não é uma mortificação, mas uma vivificação do Espírito e do seu santo modo de operar.


Portanto, a quaresma não deveria possuir o resíduo arqueológico de asceses falidas, de práticas devotas individuais e irreais, pois ela é um tempo de viva experiência com o mistério pascal de Cristo, em torno da Palavra, da memória do nosso batismo e da comunhão com a Igreja. E, repito, tudo isso é ação da própria operação do Espírito de Deus.


É justamente nessa perspectiva que começa o Evangelho de hoje: “o Espírito levou Jesus para o deserto”. A linguagem direta do evangelista revela um movimento violento, quase um empurrão.

O deserto não é uma opção ou uma iniciativa pessoal, mas é o desejo do Espírito. Dessa forma, Jesus acolhe esse movimento interior que o empurra a silenciar, a encontrar a Deus e a refazer o plano de salvação.

Na história do povo de Israel, o deserto é um lugar simbólico. O povo caminhou durante 40 anos no deserto ao encontro da terra prometida. No deserto, Israel experimenta profundamente a sua infidelidade e aceita que Deus é a sua única força. É lugar de enamoramento e de voltar ao primeiro amor. É no deserto que Israel recebe a Lei de Deus, fundamento da aliança. Então, o deserto nunca é um tempo assustador, mas um tempo de purificar a memória e de renovar a aliança.


Diferente de Mateus e Lucas, no intuito de fazer uma síntese teológica, o evangelista Marcos não enfatiza as tentações de Jesus. No entanto, tem um detalhe que me chama à atenção. No deserto, Jesus estava com os animais selvagens. Duas realidades distintas que se encontram. Jesus e os animais selvagens não são inimigos e nem estão distantes. De fato, Jesus restaura a harmonia perdida. Lembro de São Francisco e do encontro com o lobo.

De tal modo, no deserto, Jesus não expulsava os animais selvagens, mas aprendia a conviver em plena harmonia com eles. Ele é o novo Adão, o homem desperto, o homem em plena harmonia com a criação, com o cosmos e com as outras criaturas. Os anjos também estavam lá, o serviam, não somente porque era Deus, mas porque vivia em harmonia com a terra e com o céu. Então, Jesus é um homem reconciliado e pacificado.

Estes animais selvagens que Jesus encontra podem apresentar um outro significado. Eles podem simbolizar as partes sombrias e escuras que nos habitam e que, muitas vezes, nos assustam e retardam a nossa liberdade interior. Nesse sentido, esses animais selvagens podem ser comparados com tudo aquilo que grita dentro de nós, ou seja, com tudo aquilo que necessita de reconciliação, pacificidade e harmonia.


Por fim, o converter e o fazer penitência no tempo quaresmal significa: um modo de ver diferente, um encontro consigo e uma harmonia relacional. Ora, é tempo de colocar em ordem a nossa vida e, como Jesus, aprender a viver em liberdade e em perfeita harmonia. Sendo assim, teremos um estilo de vida ressuscitada e uma correta ereção que manifestará a presença dos bens salvíficos do Reino aqui e agora.


Boa quaresma!

LFCM.

Posts recentes

Ver tudo

O segredo do Pai

O final do ano litúrgico nos aproxima dos textos apocalípticos. A narrativa de hoje encerra a leitura dominical do Evangelho de Marcos. A...

Comentarios


bottom of page