top of page

Eucaristia, generosa resposta da misericórdia

  • Foto do escritor: Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
    Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
  • 30 de dez. de 2016
  • 9 min de leitura

MARQUES, L.F.C.. Eucaristia, generosa resposta da misericórdia. Revista da Liturgia, v. 258, 2016, p. 21-23.


Ó Deus, todo poderoso,

concedei que, purificados de todas as faltas

pela participação neste sacramento,

sejamos transformados

pelos remédios do vosso amor[i].

Chegando ao fim do ano santo da misericórdia, proclamado pelo papa Francisco, é preciso descobrir o melhor sinal que nos aporte verdadeiramente nesta grande e imensa possibilidade de perdão. Neste ano, tivemos a oportunidade de aprofundarmos e vivenciarmos este grande dom através dos sacramentos, expressões visíveis da misericórdia e da bondade de Deus, em particular, o sacramento da reconciliação.


Porém, é importante entendermos que, de todos os sacramentos, a Eucaristia, atualizando sacramentalmente o mistério da redenção, tende a aplicar aos homens de hoje a reconciliação obtida de uma vez para sempre por Cristo, para a humanidade de todos os tempos: “o sacramento eucarístico é o sacramento por excelência do Mistério Pascal em toda a sua extensão, é o seu prolongamento em nós”[ii].


As palavras pronunciadas no momento da consagração do vinho exprimem mais diretamente esta eficácia, pois afirmam que o sangue de Cristo, tornado presente no altar, foi derramado pela multidão dos homens para a “remissão dos pecados” (cf. Mt 26, 28). São palavras eficazes. Toda a consagração eucarística obtém o efeito da remissão dos pecados para o mundo e contribui assim para a reconciliação da humanidade pecadora com Deus: “a eucaristia é a resposta de Deus para a necessidade de cada tempo e, então, para a necessidade do nosso tempo, para as necessidades do homem de hoje”[iii].


Eucaristia e perdão é um binômio que a práxis tradicional cristã deixa a entender como uma sucessão: o perdão recebido no sacramento da Penitência é condição ou, ao menos, preparação para receber a Eucaristia. Todavia, se tivermos presente à tradição neotestamentária torna-se claro que a participação a Ceia do Senhor nos introduz na ação salvífica operada na morte e ressurreição de Jesus.

Um tema ainda aberto: Eucaristia para a remissão dos pecados

O fato que Jesus come com os publicanos e pecadores (Mc 2,15; Mt 11,19; Lc 14,21; 15,2) é um sinal do reino de Deus que ele anunciou. É o testemunho da sua pessoa e das suas ações. Também as parábolas do banquete (Lc 14,21) e as multiplicações dos pães ou os seus milagres em meio à multidão (cf. Mt 14,13-21; 15,32-39; Mc 6,30-44; 8,1-9; Lc 9,10-17; Jo 6, 1-13) fazem parte do seu anúncio do reino de Deus. Os banquetes de Jesus são entendidos como antecipação da comunidade convivial no cumprimento definitivo do reino.


A última ceia feita com seus discípulos faz parte do contéudo mais antigo da tradição de Jesus. No Novo Testamento, há quatro narrativas da ceia: Mt 26,26-29 - Mc 14,22-25 - Lc 22,14-20 - I Cor 11,23-26. Do ponto de vista da tradição, Mc 14, 22-25 está em relação com Mt 26,26-29 e I Cor 11,23-26 com Lc 22,14-20[iv]. Entre estes escritos, interessa-nos a formulação mateana da palavras da última ceia: “e, quando comiam, Jesus tomou o pão, e abençoando-o, o partiu, e o deu aos discípulos, e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo. E, tomando o cálice, e dando graças, deu-lho, dizendo: Bebei dele todos; Porque isto é o meu sangue, o sangue do novo testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos pecados” (Mt 26, 26-28). Tais palavras contêm uma promessa do próprio Senhor. É o testamento da sua morte.


A Eucaristia, enquanto atualização sacramental do “sacrifício” redentor de Jesus Cristo, é a fonte de reconciliação dos homens com Deus[v]. Toda vez que se celebra a Eucaristia faz-se presente o “corpo que é dado” (Lc 22,19) e o sangue que é “derramado em remissão dos pecados” (Mt, 26,28) e, com isso, torna-se possível a aplicação da virtude redentora na morte de cruz e da ressurreição gloriosa (cf. Rm 4,25) aos fiéis que dela participam hoje no mundo inteiro[vi].


O sangue de Jesus é sinal da nova aliança, na qual a transgressão não tem como consequência a maldição, mas o perdão. Assim, o sacríficio eucarístico é sinal do início da Nova Aliança e finalização da Páscoa antiga.Tal compreensão da oferta memorável de Jesus na cruz como remissão dos pecados é sempre uma constante provocação para a teologia católica.


A última ceia torna-se teologicamente inseparável do evento da morte-ressurreição. Portanto, “a Igreja recebeu a Eucaristia de Cristo, seu Senhor, não como um dom, por mais precioso que ele seja, entre muitos outros, mas como o dom por excelência, porque ele é o dom de si mesmo, da sua pessoa na sua santa humanidade, da sua obra de salvação”[vii] e da sua memória agente no meio de nós. Com isso, necessitamos entender a Eucaristia como “lugar teológico” originário[viii]. O efeito pós-batismal articula-se com o efeito do memorial do sangue derramado pela remissão dos pecados[ix].


A compreensão deste fato e os esforços da reforma litúrgica em promover a centralidade da Eucaristia na vida cristã e a plena participação dos fiéis intensificam a dificuldade em entender uma assembleia na qual ainda grande parte dos batizados “assiste” sem participar (comungar) do mistério celebrado.


Os motivos principais podem ser identificados em uma catequese popular que delimita em ordem ao pecado mortal do cristão praticante, a uma incompreensão da ideia paulina de dignidade[x] e a prescrição tridentina que indica a necessidade da confissão sacramental para receber dignamente a comunhão[xi]. Contudo, o Concílio sempre se manifestou convicto de que os fiéis deveriam comungar em cada Missa e não só em desejo espiritual, mas também na recepção sacramental (cf. DS 1747). A celebração da Eucaristia destrói efetivamente todos os obstáculos, também os pecados mortais, que impedem a plena comunhão de vida com Deus e os irmãos, concedendo a graça da penitência em virtude do sacrifício de Cristo[xii].


A razão pela qual Trento é cauteloso em afirmar o ligame entre Eucaristia e remissão dos pecados é explicada a partir da posição errônea, atribuída a Lutero, de que a Eucaristia não possuiria outro efeito senão a remissão dos pecados. Sustentando com força a ideia de que a Eucaristia tem poder sobre os pecados, os Padres tridentinos procuraram uma via intermédia que afirmasse esta verdade evitando, todavia, abandonar o valor e a legitimidade da Penitência. Entretanto, sobre o influxo rigorista, sobretudo do jansenismo, a ligação entre confissão e comunhão, independente da gravidade do pecado, torna-se normal na guia dos fiéis até o início do século XX. Praticamente torna-se lei, mesmo que não escrita, que uma confissão dava o direito de uma só comunhão.

A Igreja tem sentido só quando perdoa e dá o pão. Isto é misericórdia!

A liturgia, através da sua milenar contemplação do mistério, sempre soube sintetizar tal ideia: “sua carne, imolada por nós, é o alimento que nos fortalece. Seu sangue, por nós derramado, é a bebida que nos purifica”[xiii]. Estas breves considerações refletem uma realidade muito vivida no passado e hoje deixada um pouco de lado[xiv].

Se o pão é quotidiano, porque o recebe depois de um ano? Recebes a cada dia aquilo que te favorece a cada dia! Quem não merece recebê-lo a cada dia, também não o merece depois de um ano. Assim, escutas dizer que cada vez que vem oferto este sacrifício, vem anunciada sacramentalmente a morte do Senhor, a ressurreição do Senhor, a ascensão do Senhor e a remissão dos pecados, e depois, não recebes a cada dia este pão de vida? Quem tem uma ferida, procura a medicina. A ferida é que estamos sujeitos ao pecado; a medicina é o celeste e venerável sacramento[xv].

A eucaristia é remédio e medicina. Ela cura as feridas do pecado, restaura no homem pecador a imagem originária e faz nova a Igreja[xvi]. Pela participação neste sacramento somos transformados. É um caminho sempre a percorrer e a redescobrir a partir de uma leitura serena e autêntica da tradição eclesial, dos dados bíblicos, patrísticos e litúrgicos. De fato, fazer viver de novo os homens que morreram pelos pecados é efeito da mesa sagrada, uma vez que não é possível, pela força humana, levantar um homem caído, porque o pecado é uma ofensa ao próprio Deus: com a transgressão da lei desonras o Deus da lei, sendo assim, é necessária uma virtude mais do que humana para cancelar a culpa[xvii].


A Igreja, na sua oração, diz a Deus e a si mesma que a participação no corpo e no sangue de Cristo, mediante a oferta e a comunhão, é expiação e purificação de todo o pecado, cura de todas as ofensas, reconciliação com Deus e com os irmãos. Participar do pão partido e do sangue derramado com um coração sincero, de fato, significa[xviii] participar do dom mais perfeito da misericórdia de Deus, da oferta memorável feita para a nossa salvação.


Concordar com esta dimensão simbólico-ritual da Eucaristia é uma urgência eclesial, uma urgência que exige da Igreja uma grande franqueza para poder fazer uma releitura da Tradição[xix].


É uma compreensão sempre muito radical que força uma mudança também radical no comportamento religioso de cada fiel e na vida sacramental da comunidade cristã, pois passa-se de uma piedade fortemente marcada da consciência de culpa e, em consequência, da separação de Deus, a uma piedade eucarística que promove um intenso senso de participação e de comunhão dentro do Corpo de Cristo.

É esta a força da Páscoa. A Igreja tem sentido só quando perdoa, quando dá o pão. E quando reflete ou faz teologia deve recordar sempre que não tem mais nada para tentar expressar a não ser o poder da ressurreição. Cada palavra tem que abrir, libertar alguém, acessar a inteligência de Deus, no seu mistério mais profundo, que é o mistério da existência, do ser e do amor[xx].

Como conclusão, recordamos a lúcida frase do Papa Francisco, enraizada na grande tradição patrística de Santo Ambrósio: “a Eucaristia, embora constitua a plenitude da vida sacramental, não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos”[xxi]. Através da Eucaristia, resposta de Deus para o todos os tempos, centro da comunidade eclesial, podemos fazer uma experiência renovadora, irradiante e constante da misericórdia.





Referências

[i] Oração de pós-comunhão da Sexta-feira depois das cinzas. [ii] Vagaggini, C. Caro salutis est cardo. Corporeità, Eucaristia e Liturgia, in G. Lercaro, Roma: 1966, p. 202. [iii] Witwer, Toni. Spiritualità sacramentale nella vita quotidiana. Roma: Edizioni AdP, 2006, p.142.

[iv] Cf. Hoping, Helmut. Il mio corpo dato per voi. Storia e teologia dell’eucaristia. Brescia: Ed. Queriniana, 2015, p. 20. [v] Cf. Massi, P. Penitenza ed Eucaristia, em Rivista Liturgica 54 (1967) 774-778. [vi] “O perdão é atribuído tanto à Eucaristia-sacrifício, quanto a Eucaristia-sacramento” (cf. Francisco, M. João. Outras formas de celebrar a penitencia e o perdão, in: Deixai-vos reconciliar (Estudos da CNBB, n.96). Brasília: Edições CNBB, 2008, pp. 109-145. [vii] Ecclesia di Eucharistia, n. 11. [viii] “Com relação à compreensão de Eucaristia, os testemunhos privilegiados da Tradição são os documentos da Antiguidade cristã: os textos eucológicos legados pela tradição litúrgica do Oriente e Ocidente cristãos, ao lado do testemunho dos Padres da Igreja, que transmitem a compreensão eclesial dos mesmos. O primeiro milênio da cristandade deve ser privilegiado, porque nele encontramos uma compreensão da eucaristia anterior à polarização das controvérsias que estreitaram o campo de explicação teológica da eucaristia e, consequentemente, as formas de expressão da própria prática litúrgica. Por outro lado, o testemunho desses primeiros séculos da Igreja é facilmente aceito pelas diversas comunhões cristãs como ponto de partida do diálogo para reencontrar a comum tradição da fé” (Gopegui, J. A. A Eucaristia: Uma reflexão a partir da tradição litúrgica, Revista Perspectiva Teológica 32 (2000) 157-186). [ix] Tillard, J.M.R. La pénitence sacramentale: une théologie qui si cherche, StudMor 21 (1983) 12-13. [x] Afirma P. Sorci: “Tal visão da Eucaristia não é por nada mostrada no capitulo 11 de I Corintios. Uma leitura apologética e preconceituosa acreditou que podia limitar e até mesmo negar a participação nos dons eucarísticos. Nela, o apóstolo, depois de ter denunciado os abusos daquela comunidade, na qual os irmãos não respeitavam-se uns aos outros, consumindo tudo com os amigos, e enquanto uns se embriagam, outros passavam fome e os pobres eram humilhados. Agir desse modo é desconhecer o valor primário do pão e do vinho, não primando assim pela unidade do corpo de Cristo, comem e bebem a própria condenação. Para que a participação nestes santos dons seja salvífica, é importante que cada um examine a fé que se expressa nas relações com todos os membros da Igreja (cf. Sorci, P. L’eucaristia per la remissione dei peccati, Rivista di Pastorale liturgica (1982) 18-26). [xi] O Batismo é a premissa para a Eucaristia, pois transforma o homem pecador, cúmplice de Adão, em homem novo, que possui em si mesmo o princípio da vida que lhe torna conatural ao Corpo de Cristo e, assim, idôneo a receber a comunhão. A eucaristia não exige uma genérica dignidade ritual, mas sim a dignidade batismal, que não é de tipo ritual, mas sim existencial. [xii] Afirma o Concílio de Trento: “como neste divino sacrifício que se realiza na Missa está contido e é incruentamente imolado o mesmo Cristo que se ofereceu, uma vez por todas, de maneira cruenta no altar da cruz (cf. Hb 9,14.27ss), o santo Sínodo ensina que este sacrifício é verdadeiramente propiciatório (cân.3); se, com o coração sincero e a reta fé, com temor e reverência, contritos e penitentes, nos aproximamos de Deus, obtemos por Ele misericórdia e encontramos a graça por um auxílio oportuno (Hb 4,16). Aplacado por esta oblação, o Senhor, concedendo a graça e o dom da penitência, perdoa os crimes e os pecados, por grandes que sejam (DS, n. 1743). Segundo M. Busca, o texto conciliar quando usa os termos de «contrição» e «penitência» não refere-se ao sacramento da penitência em forma explícita, mas a uma condição subjetiva exigida para a participação ao sacrifício da Missa e as consequências objetivas de uma participação autêntica ao mistério Eucarístico que anuncia o dom divino de remissão das culpas (cf. Busca, Marco. Verso un nuovo sistema penitenziale. Roma: Centro Liturgico Vicenziano, 2002, pp. 239-240). [xiii] Prefácio da Santíssima Eucaristia I. [xiv] Cf. Alszerghy, Z. – Flick, M. Il sacramento della riconciliazione. Torino: 1976, p.156. [xv] Ambrósio, De sacramentis, 5, 25; PL 16, 439. [xvi] Cf. Sorci, P. L’eucaristia per la remissione dei peccati. Ricerca nel sacramentario veronese. Palermo: Instituto Superior di Scienze Religiose, 1979. [xvii] Cabasilas, Nicola. La vita in Cristo. Roma: Cittá Nuova, 1994, p.189. [xviii] Sorci, P. L’eucaristia per la remissione dei peccati, p.24. [xix] Cf. Ligier, L. Penitence et Eucharistie en Orient. Theologie sur une interference de prière et de rites, em Orientalia Christiana Periodica 29 (1963) 5-78; Garcia, J.A. La Eucaristia como purificación y perdón de los pecados em los textos liturgicos primitivos, em Phase 37 (1967) 65-77. [xx] Gouzes, Andre. La notte luminosa. Iniziazione al mistero della Pasqua. Magnano: Edizioni Qiqajon, 2015, p.124. [xxi] Evangelii Gaudium, n. 47.

Posts recentes

Ver tudo
A fraternidade como sacramento

Na expectativa de receber uma nova encíclica do papa Francisco muitas reflexões têm sido abertas. Se prevê que a partir de uma série de...

 
 
 

Comments


© 2023 por NÔMADE NA ESTRADA. Orgulhosamente criado com Wix.com

  • Facebook
  • Instagram
bottom of page