O grande mistagogo
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
- 21 de abr. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 22 de abr. de 2023
Após a morte de Jesus, os mais humanos sentimentos eram manifestações na vida dos discípulos. O medo, a tristeza, a desilusão e a culpa eram os mais frequentes. Embora soubessem da escolha de Jesus em dar a vida, nenhum deles imaginava que o processo seria tão violento e doloroso. Os sentimentos de morte eram tão fortes que havia a dificuldade em acreditar na ressurreição como possibilidade e realidade. O Evangelho de hoje oferece-nos mais um dos caminhos pelos quais os discípulos imperfeitos tentam chegar a crer na ressurreição de Jesus. Com efeito, os relatos da aparição do Ressuscitado revelam a pedagogia utilizada por Jesus para curar os corações feridos dos seus amigos.
Madalena, Pedro, o outro discípulo, Tomé e os discípulos de Emaús foram os principais atores das narrativas da ressurreição. Esses personagens revelam os sentimentos e as crises existenciais de todos os discípulos. Eles mostram o retrato vivo da situação dos discípulos. Era preciso reconstruir a razão e curar o coração.
Ao contrário do que o evento sugere, o fato mais interessante dos relatos das aparições é a ausência do triunfo extraordinário do Mestre. Jesus aparece de forma discreta, simples e na vida particular de seus discípulos. Ele se manifesta no espaço sombrio do sepulcro, nas paredes “frias” do cenáculo, no cotidiano desnorteado e na estrada desiludida de Emaús. Ele era o grande mistagogo da obra da redenção e da salvação.
Dois discípulos que tinham ido a Jerusalém para celebrarem a festa da Páscoa testemunharam o dramático julgamento de Jesus. O Mestre, profeta poderoso em obras e palavras, havia sido condenado à morte de cruz. O triste fim de um projeto e o não descer de Jesus da cruz salvando a si mesmo marcavam a desilusão dos discípulos. Mesmo sabendo sobre o ministério de Jesus desde o início, eles esperavam a libertação de Israel e agarravam-se na ideia infantil de um Messias poderoso e cheio de glória. A decepção e a frustração eram tão grandes que não acreditavam no testemunho das mulheres.
Esses dois discípulos afastam-se de Jerusalém, abandonam o lugar da comunidade e dos acontecimentos fundamentais da sua vida rumo a Emaús. Emaús é um lugar indefinido pois no tempo de Jesus não existia uma aldeia com esse nome. Voltar a Emaús significava voltar ao passado e fugir da realidade fingindo que nada havia acontecido. Eles preferiram partir sozinhos, convencidos de que jamais alguém poderia dar sentido àquela tragédia. Não acreditavam nas mulheres e não queriam uma resposta comum para aquele acontecimento. Assim, agarraram-se à Tradição de que o Messias deveria ser triunfante e não morrer numa cruz. Era difícil colocar no coração deles a nova ideia e a possibilidade de que Jesus estava vivo. Enquanto raciocinavam por si mesmos, Jesus aproximou-se e começou a caminhar com eles.
Por conhecer o contexto comunitário, o evangelista Lucas coloca nos lábios dos discípulos o pensamento de toda a comunidade. Eles sabiam o que Jesus havia feito e ensinado. Entretanto, consideravam o Mestre, sábio e poderoso, possuidor de uma mensagem de paz e de amor que transformava corações e curava vidas.
O conflito existencial no coração dos discípulos existia porque eles não aceitavam que Jesus morrera como os outros profetas. Tudo poderia ter acontecido com Ele, inclusive, a injustiça da cruz, menos a morte. Era impensável acreditar numa história messiânica que tivesse como fim a morte de cruz. Todos poderiam morrer e sofrer injustiças do Estado, menos Ele. A consequência desse conhecimento incompleto e ingênuo se traduzia em profunda tristeza.
Os discípulos estavam tristes, pois o projeto deles havia falhado junto com o sonho de um novo tempo. A nascente comunidade estava sendo perseguida, maltratada e caluniada. Eram vítimas de todos os preconceitos. Viam o triunfo dos malvados que se mantinham no poder propagando mentiras e calúnias. As forças interiores faltavam-lhes. Com tristes rostos procuravam aceitar que o projeto evangélico de Jesus não se concretizaria, impossibilitando a chegada do novo tempo.
Em meio à tristeza, Jesus aproxima-se e estabelece um novo diálogo. Os dois discípulos não conseguem ver que o Senhor caminha ao lado deles naquele momento de profundo desânimo. A tristeza e o desgosto lhes fechou os olhos. A falta de inteligência e a lentidão do coração dos discípulos foi percebida pelo Mestre que começou a ouvi-los e recontou toda a história dos últimos acontecimentos ressaltando a importância de eles terem acontecido. O Ressuscitado bem sabia que sua glória era a cruz. Sentindo que o coração dos discípulos ardia pela força da Palavra, Jesus finge ir mais adiante do caminho dos viajantes. Os discípulos pedem para que Ele permaneça. À mesa acontece o desfecho final da narrativa. No gesto do partir o pão, os discípulos tornam-se iluminados e percebem que estavam diante da presença de Jesus. Na partilha da dor e do pão, os discípulos sentem-se entendidos e compreendem que Jesus estava com Eles. Assim a cura acontece. A decepção transforma-se em um novo ardor fazendo-os voltar para Jerusalém junto da comunidade a fim de anunciaram que realmente Jesus havia ressuscitado.
A narrativa de Emaús é uma das páginas mais envolventes do Evangelho. Ao refletir sobre sua comunidade, o evangelista constrói a história dos discípulos desiludidos. A decepção e a desilusão foram uma realidade na vida dos discípulos de todos os tempos. A atualidade do Evangelho e a sua vivacidade revela que essa história do passado é a história da vida de hoje.
Muitas são as situações que nos decepcionam colocando em nosso coração o desejo de abandonar tudo e todos e caminhar sozinho com os olhos fechados. A incompreensão da vida, o cansaço da tentativa e a dificuldade em acreditar confirmam que o melhor é viver na solidão seguindo sozinho o caminho. Os dramas existenciais e as dificuldades nas relações são grandes que nossos sentimentos são enganados por nossos raciocínios.
O projeto do amor de Deus é tão bonito que a lentidão do nosso coração não o aceita. O caminho da cruz é inconcebível e absurdo. O desejo de viver sozinho ou de retornar aos velhos tempos é constante tentação. Quase sempre estamos nas estradas de Emaús. Temos muitas decepções, vivenciamos feridas e vivemos à procura do sentido das coisas. Quando as relações se rompem, sentimo-nos perdidos e sem esperança. Acreditamos ser preferível fugir, partir e sumir... Na relação com Deus e em nossos relacionamentos recordamos apenas dos momentos alegres e gloriosos fugindo dos misteriosos momentos de “cruz”: a falta da fé, o crescimento da desilusão e o aumento da decepção. O ardor dos discípulos volta quando o próprio Jesus recorda a história de amor que construíram juntos curando seus corações e abrindo-lhes os olhos para que voltassem a sonhar.
Senhor, fica comigo nos momentos fortes de desilusão e de tristeza. Recorda-me da história de amor que juntos construímos. Cura os meus raciocínios mesquinhos e os meus sentimentos medíocres. Dai-me a graça de perceber a tua presença amiga nos meus dolorosos conflitos existenciais e nos meus desejos de seguir sozinho e distante da comunidade. Abra os meus olhos para que eu possa voltar a sonhar e continuar nossa história de amor.
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