O movimento da compaixão
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
- 9 de jul. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 16 de jul. de 2022
O Evangelho de hoje nos ensina o real sentido da proximidade. Aproxima-se de Jesus um judeu, doutor da Lei, que Lhe faz uma pergunta: “Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida eterna?” Por ser um doutor, consegue esconder em seu questionamento uma sutileza teológica: não fala de “merecer" a vida eterna, mas de recebê-la como uma "herança". A herança não é uma conquista, mas um recebimento gratuito. A tentativa é colocar Jesus à prova, pois não há sentido que esse doutor tenha feito uma pergunta tão simples e ingênua. Não cabe a um doutor da Lei perguntar sobre a Lei. Por isso, o interesse é subjetivo e a questão revela algo sobre o próprio homem: fala em fazer coisas para receber heranças. Fala de deveres e pensa em resultados. Usa termos legais, pensando que a vida aconteça a partir dos bons comportamentos, da razão perfeita e da pura moral. Em seu entendimento e no seu coração, a vida eterna é consequência da observação perfeita da Lei. Seu desejo é colocar à prova a paciência, a bondade e a inteligência de Jesus.
Jesus não perde tempo com pessoas que pensam e vivem a partir das leis. De forma direta, responde ao doutor com outra pergunta: “o que está escrito na Lei? Como lês?”. Não hesitando e sem delongas, o doutor responde: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração e com toda a tua alma, com toda a tua força e com toda a tua inteligência; e ao teu próximo como a ti mesmo!” Vimos que a resposta do rabino recorre a dois textos bíblicos. O primeiro é bem conhecido, pois todo israelita piedoso o recita nas orações da manhã e da noite. O segundo é retirado do livro de Levítico. Resposta perfeita e óbvia para um conhecedor de Lei.
A lógica de Jesus não era baseada em conhecimento de doutrina, pois se a fosse, o doutor da Lei seria promovido com louvor e nota máxima. Para Jesus não basta “saber” a Palavra de Deus, é preciso assimilá-la na prática. Sem muito acrescentar e no desejo de encerrar a arguição, Jesus conclui: “Tu respondeste corretamente. Faze isso e viverás”. Não satisfeito com a resposta, ainda querendo justificar-se, o especialista da Lei, continua com outra pergunta: “E quem é o meu próximo?”. Vemos que a referência das perguntas do legista é ele mesmo. Tanto na primeira como na segunda, o foco é si mesmo: "que devo" e "meu próximo". Seu problema é acreditar que o mundo funciona a partir de si, acredita ser o centro do universo, iludido como uma criança, enxerga tudo a partir de si e de suas necessidades.
Um homem descia de Jerusalém para Jericó. Não sabemos sua idade, profissão, tribo ou religião. Nem sabemos se era um homem bom ou ruim. Os únicos dados que temos é de que ele havia sido assaltado, espancado e deixado quase morto. No mesmo caminho descia um sacerdote e um levita. Dois homens religiosos que se ocupavam das coisas de Deus e do Templo sagrado. Eles passaram pelo homem “quase morto” e seguiram adiante. Não quiseram contaminar-se pois, provavelmente, tinham acabado de cumprir todos os exercícios rituais, oferecido todos os sacrifícios prescritos e participado das solenes liturgias. Estavam tão focados e maravilhados pelas coisas de Deus que passaram "batido" por este homem caído no caminho.
Também, na mesma estrada, descia um samaritano. Os samaritanos são o contrário dos dois religiosos observantes e puros. Eles são considerados gente impura, cismática e herética. Detestados pelos judeus e sempre em luta com e contra eles. Diante do homem necessitado, não segue seus raciocínios, mas o seu coração: esquece seus negócios e compromissos, as normas religiosas, o cansaço, a fome e o medo. Imediatamente, atua e compromete-se em encontrar alguma solução para o problema, sem interesses religiosos e não por cálculo de méritos, mas com o desejo de agradar a Deus através de seu coração angustiado e pela compaixão humana ao ver o homem caído e quase morto.
O narcisismo autorreferencial do doutor da Lei, instiga Jesus a construir essa história a fim de ajudá-lo a fazer uma releitura da Lei, raciocinando de outra forma. Narrando sua história, Jesus insere nela, como uma das personagens, integrante e fundamental, o próprio doutor legista. Por fim, Jesus pergunta ao rabino: “quem foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” Esse questionamento revela a maturidade de uma pessoa que, tomando iniciativa e saindo da sua infantilidade e do seu mundinho fechado, percebe a necessidade do outro. Segundo Jesus e na lógica do Evangelho, sair de si e perceber o outro é o primeiro movimento para herdar a vida eterna. Sem dúvida, esta é a pergunta da verdadeira felicidade.
A compaixão do samaritano realizou gestos concretos. Compaixão é uma característica essencial da misericórdia de Deus: a misericórdia é um fazer e não um sentir. Esse sentimento é mais efetivo do que afetivo. Desse modo, não permaneceu olhando, sentiu desejo de cuidar e, aproximou-se, enfaixou suas feridas, despejou azeite e vinho, carregou o peso, o transportou para um lugar adequado e interessou-se por ele. Pensou, também, no futuro do homem. O samaritano comprometeu-se em retornar e, eventualmente, completar seu trabalho. Para continuar o cuidado, deixou duas moedas de prata: mais ou menos duas diárias de trabalho, nem muito nem pouco, mas o necessário para os dias sucessivos. Nada de muito extraordinário, pois cuidar das feridas do outro não requer gestos grandiosos, mas honestidade de reconhecer o que realmente é necessário. Não basta ver o sofrimento do outro, mas assumi-lo como seu e como responsabilidade pessoal. O outro não deve ser objeto social, o qual, os responsáveis devem ser os outros, menos eu.
Cristo não fala de conhecer o próximo, mas de tornar-se próximo. O samaritano não provou que a vítima era seu próximo, mas que era próximo da vítima. O próximo é responsabilidade pessoal. É ação sobre si mesmo. O próximo é a vocação para a qual sou chamado. Quando falo de próximo, falo sobre mim mesmo. Não é uma condição, mas uma ação. O próximo não é aquele que está fisicamente perto de mim, mas aquele de quem eu me aproximo. A proximidade não é um estado, mas uma ação. Antes de ser uma ação para o outro, é uma ação para e sobre mim mesmo. É uma decisão de sair de onde sou e estou fazendo-me próximo do outro onde quer que ele seja e esteja ou em qualquer situação de necessidade.
Esta parábola é iluminadora, capaz de nos ajudar a reconstruir a sociedade humana. A única opção que temos é a da proximidade, pois qualquer outra, nos coloca no mesmo lugar dos religiosos hipócritas e dos perversos assaltantes. Ambos deixam os caídos na beira da estrada. Se o doutor da Lei que habita em cada um de nós desejar encontrar vida plena e felicidade perfeita, deve mudar o modo de olhar e aprender com o samaritano que tomou a iniciativa, deixando-se mover pela compaixão. Necessitamos descobrir que passar a vida olhando para si mesmo, embora com objetivos de melhorar e alcançar uma vida ética e espiritual cada vez mais exigente, não nos garante uma boa realização pessoal. A vida torna-se plena quando conseguimos mudar o olhar, inverter a perspectiva e refazer a pergunta. O movimento de sair de nós mesmos e de desfocar dos nossos desejos autorreferenciais nos permite entender e acreditar que em nossas situações de morte seremos encontrados pelo samaritano Jesus.
Senhor, ajuda-me a não pensar todas as coisas a partir de mim mesmo e da Lei. Dai-me a liberdade de não desejar os méritos das minhas ações e nem buscar heranças, pensando sempre na lógica abundante do Evangelho e do Reino. Ensina-me que a misericórdia é mais um fazer do que um sentir. Faze com que eu aprenda a sair de mim mesmo para fazer-me próximo do outro, onde quer que ele seja ou esteja a fim de que eu possa encontrar vida plena, felicidade verdadeira e realização evangélica.
LFCM.
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