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O rosto apaixonado

Foto do escritor: Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv. Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.

No início do tempo da Quaresma vivenciamos duas dinâmicas do Espírito: a contemplação do rosto humano de Deus no deserto e a contemplação do rosto divino do homem no monte Tabor. Jesus vai ao deserto e é tentado pelo demônio. Depois, sobe ao monte e experimenta a glória da transfiguração. Uma vida exposta às tentações, mas consolada ao desejar fazer a vontade de Deus. Essas experiências simbólicas resumem a vida do cristão: uma vida exposta às tentações, mas que recebe consolações ao permanecer em comunhão com Deus.


O deserto foi o lugar simbólico da solidão e do encontro consigo mesmo. O monte Tabor foi o lugar simbólico da comunhão e da relação com o projeto criativo e salvífico do Pai. O deserto sempre foi um espaço exigente e provocador, pois através dele se descobriu a identidade e se aceitou a missão. As tentações que Israel suportou no deserto foram semelhantes às três experienciadas por Jesus e são as mesmas dos homens de todos os tempos.


Ao anunciar sua paixão aos discípulos, Jesus tomou consciência de que eles não aceitaram a realidade “escandalosa” da morte na cruz. Seis dias após esse anúncio, Jesus subiu à montanha para rezar levando consigo Pedro, João e Tiago. A escolha desses três personagens não foi feita a partir dos privilégios ou dos méritos pessoais de cada um deles, nem mesmo pela profissão de fé. Muito pelo contrário, os três eram os mais rebeldes, os mais influentes e os mais persuasivos do grupo dos apóstolos. A Simão, deu o nome de “cabeça-dura” e pediu para afastar-se; a Tiago e a João chamou de “Boanerges”, filhos do trovão, homens turbulentos, impulsivos e de temperamento forte.


No monte, Jesus foi transfigurado diante dos três discípulos. Seu rosto brilhou como o sol e suas roupas ficaram brancas como a luz. Ele revelou-Se numa aparência modificada. Os discípulos nunca tinham visto o rosto de Jesus tão radiante. Antes mesmo de sair para Jerusalém, Jesus saiu de Si mesmo. A condição fundamental de sua decisão foi a liberdade. Jesus foi transfigurado e permitiu com que seus discípulos pudessem ver algo além do que os olhos humanos e sensíveis pudessem habitualmente ver e reconhecer.


O rosto mudado e as vestes transformadas revelaram a beleza de um homem “apaixonado” que ao ouvir a voz do Pai sentiu plena consonância dos desejos e das intenções divinas. A luz do rosto apaixonado de Jesus indicou que, durante a oração, Ele ouviu, consentiu, compreendeu e desejou o mesmo desígnio do Pai: um sacrifício que não terminaria em derrota, mas na glória da ressurreição e na revelação suprema do amor. A verdadeira luz é sentir-se amado.

O “mistério de Deus” sempre nos supera. Sua voz amplia nossos olhos, abrindo nossa mente e alargando nosso coração. A voz divina é a voz que toca e desperta forças desconhecidas em nosso interior; ativa nossa identidade; faz-nos voltar ao nosso ser essencial; reconstrói nossa dignidade e ajuda-nos conectar com nosso ser profundo.

A impulsividade de Pedro fez com que houvesse uma confusão sobre a revelação: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias”. A intervenção de Simão manifestou a beleza da transfiguração, entretanto, quis convencer Jesus de que o caminho da cruz não era o melhor. Ao colocar Moisés no centro, ele acreditava que Jesus havia vindo para cumprir a Lei.


Nossa transfiguração começa quando deixamos de apenas nos ouvir, de dar razões aos nossos medos, de dar espaço às nossas ansiedades e de colocar as leis humanas acima de tudo. Nesse sentido, o passo decisivo para a conversão de Pedro e para a nossa conversão é colocar Jesus no centro da existência, retirando tudo que atrapalhe com que esse espaço seja ocupado por Ele. A conversão começa quando começamos a ouvir a voz que nos chama para sairmos de nós mesmos, dando vida, sonhando alto e não tendo medo. Esta é a grande lição da Transfiguração: lembrar da luz quando estamos no escuro e aprendermos a ouvir a voz divina, apesar de nossos medos.

Ao invés de buscarmos visões, revelações e aparições, devemos buscar a verdadeira Luz: Jesus, o filho de Deus. A Transfiguração nos mobiliza a ultrapassar a superficialidade da realidade e nos impulsiona a ir além das aparências. Transfigurar é aprofundar nosso rosto num acontecimento ou num ato de transformação das nossas vidas ao desejo de Deus. Transfigurar é um apaixonar-se constante por Deus e por tudo aquilo que Ele realiza.

No Antigo Testamento, a nuvem, sinal da proteção e da presença divina, envolve Pedro, Tiago e João, num momento particularmente significativo de suas vidas, e os introduz no mundo de Deus. Assim, eles gozam da iluminação que os permite compreender a verdadeira identidade do Mestre, pois não esperavam um Messias que, após um duro conflito com o poder religioso, seria combatido, perseguido e morto, mas esperavam um Messias glorioso, forte e dominador.


Portanto, os dois primeiros domingos do tempo da Quaresma trazem dois espaços simbólicos significativos. O primeiro convida-nos viver o necessário propósito da conversão. O segundo vivifica nosso espírito a fim de estarmos disponíveis ao desejo de Deus e para que nos apaixonemos com os projetos do Pai. Esses espaços não são duas opções distintas, mas caminhos únicos que permitem recordar a promessa e o sentido da nossa missão. Ora entramos no deserto, ora subimos ao monte. Frequentemente somos chamados a subir com Ele ao monte, a “entrar na nuvem” do Espírito sem medo e, sobretudo, a ouvi-lo e a segui-lo como o único caminho para o Pai. Somos chamados a refletir constantemente sobre todos os mistérios de Cristo guardando-os em nossos corações a fim de que possamos ser transfigurados.


Senhor, ensina-me o mesmo silêncio e a mesma contemplação que ensinastes a Pedro, Tiago e a João. Nutre os meus sentimentos com a tua Palavra e purifica os olhos do meu espirito para que possa gozar da visão da tua glória. Não permita com que procure por propostas distantes do mistério da cruz. Desejo apaixonar-me pelo projeto salvífico. Permita-me ouvir a voz do Pai para transformar minhas atitudes e meus comportamentos a fim de que eu seja transfigurado.


LFCM.



Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 17,1-9

Naquele tempo,

1 Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha.

2 E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz.

3 Nisto apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus.

4 Então Pedro tomou a palavra e disse: "Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias".

5 Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: "Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo meu agrado. Escutai-o!"

6 Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra.

7 Jesus se aproximou, tocou neles e disse: "Levantai-vos, e não tenhais medo".

8 Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus.

9 Quando desciam da montanha, Jesus ordenou-lhes: "Não conteis a ninguém esta visão até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos". Palavra da Salvação.


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