O sabor e a lucidez do mundo
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
- 4 de fev. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 25 de fev. de 2023
Após o Evangelho das bem-aventuranças, o primeiro discurso de Jesus e a principal indicação para a implementação do Reino de Deus, Jesus sublinha a árdua missão dos seus discípulos. Para facilitar o entendimento daqueles que estão ao seu redor, Ele evoca a imagem do sal e da luz. A narrativa de Mateus nos revela que não se trata apenas de um chamado, mas de uma confirmação: “vós sois”.
Os rabinos de Israel afirmavam que a Torá, a Santa Lei dada por Deus ao seu povo, é semelhante ao sal. Aproveitando-se dessa imagem, Jesus quer provocar os seus ouvintes e aplicá-la aos seus discípulos. Ele não nega a convicção do povo de Israel que considera as Sagradas Escrituras como sal da terra, mas afirma que aqueles que o seguem também o são, sobretudo, quando assimilam a sua Palavra e se permitem ser guiados pela sabedoria das bem-aventuranças.
Distinguir um seguidor de Jesus tornava-se o princípio fundamental da proposta evangélica, pois Ele desejava que os seus seguidores pudessem dar passos maiores em relação ao amor e ao bem. Dessa maneira, não é supérfluo analisar a conjugação afirmativa do verbo ser. Na fala de Jesus não está um simples “vocês devem ser”, mas “vós sois”. A afirmação coloca os discípulos não apenas na busca de um modo de ser, mas na aceitação de um estilo de vida proveniente de Jesus. Ser sal e o ser luz é o estilo de vida daquele que foi chamado por Cristo para viver com Ele na propagação do Reino de Deus. Essa é a identidade natural do discípulo de Cristo. A afirmação da identidade dos discípulos aparece também como uma exortação ou advertência prática da missão. Em virtude da adesão ao projeto de Cristo, o sal que perde o sabor não serve para nada e a luz que não clareia não tem sentido de ser.
A intenção de Jesus apresenta uma dinâmica de saída de si mesmo. Ele apresenta o sal e a luz como algo necessário para os outros: sal da terra e luz do mundo. Ao indicar a terra e o mundo, não limitando os espaços, Jesus apresenta uma perspectiva aberta e ampla. Assim, a sua advertência é para não deixar o sal perder o sabor e para não permitir com que a luz se apague. Os discípulos são chamados a colocar sal para conservar os corações num bom estado de vida. Renovar os corações e libertar da corrupção do pecado é obra da redenção de Cristo, no entanto, a continuidade desse processo depende da força e da solicitude daqueles que são chamados.
O sal sempre teve muitas qualidades. A mais imediata é dar sabor aos alimentos. Não é o
ingrediente principal, mas potencializa o gosto dos alimentos. Outra função do sal é conservar os alimentos. Os discípulos sendo sal tem a possibilidade de alimentar as fomes existenciais e conservar para que a corrupção do coração não aconteça ao apresentar uma vida interior mais saudável. Entretanto, o sal exige a sua justa medida. Por exemplo, quando colocamos sal demais nos alimentos impedimos a sua função de alimentar. Ninguém consegue comer algo que está muito salgado. O sal simboliza a sabedoria. Nem sal demais nem sal de menos, a medida deve ser justa e prudente. Aos discípulos é dada uma sabedoria que seja capaz de dar sabor e significado à vida de tantos. Enfim, a arte do sal está no desaparecer ao dar o sabor. É nessa condição que o sal faz a diferença. A parábola do sal se conclui pedindo que os discípulos não se tornem sem sabor.
A imagem da luz também evoca a necessidade de iluminar a vida do outro. A função da luz é clarear o caminho para prevenir as surpresas e evitar os perigos da estrada. A luz que esplende na noite permite a orientação do sentido na estrada escura. Se não tem luz tudo se torna escuridão, facilmente se perde o caminho e se torna vítima das “feras”. Ser luz é a responsabilidade primária dos cristãos. Entretanto, é preciso saber que a luz não pertence ao discípulo. Ele é a manifestação da luz de Cristo. É preciso acolhê-la para refleti-la como um farol.
O mundo tem necessidade da luz do Evangelho que transforma, cura e garante a salvação a quem o acolhe. Somente ouvindo a Palavra luminosa de Jesus podemos ser a sua luz. É graças à escuta da sua Palavra que os discípulos podem ser chamados de “luz do mundo”. Na simbologia bíblica, a luz é um atributo da Palavra de Deus: “lâmpada para os meus passos é a tua Palavra, luz para o meu caminho”. “Haja luz" é a primeira palavra que sai da boca do Deus criador (Gn 1,3). O próprio Jesus, “luz do mundo”, transmite a sua luminosidade a quem aceita deixar-se guiar pela sua Palavra através da escuta que se torna seguimento: “quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida”.
A iluminação do discípulo acontece através das boas obras: “assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus”. Somos reconhecidos como discípulos d’Aquele que é a Luz do mundo, não pelas palavras, mas pelas obras. Enquanto luz os discípulos percorrem um caminho, indicam uma direção e revelam a beleza de Deus dentro da noite escura do mundo. A nossa luz brilhará como a aurora quando formos capazes de repartir o pão com o faminto, acolher em nossa casa os pobres e os peregrinos, manifestando obras de justiça e de caridade; e quando fomos capazes de tirar alguém das trevas interiores que habitam a existência. Dar lucidez, esclarecer e iluminar é a ação mais profunda que o discípulo de Jesus pode fazer no mundo de hoje.
Luz e sal também indicam inteligência. O discípulo inteligente se atreve corajosamente a enfrentar as mudanças, reconhecendo que não se pode esperar que as coisas mudem se continuarmos a pensar como sempre e fazer as mesmas coisas de sempre. A inteligência analisa as situações e ousa imaginar novas soluções, alimentando com a vida, libertando da corrupção humana, trazendo lucidez à história e lançando fachos de luz nas áreas sombrias do caminho. Com efeito, a missão dos cristãos na sociedade é dar “sabor” à vida ao apresentar o amor de Cristo e, ao mesmo tempo, manter distantes os germes poluidores da indiferença, do egoísmo e da inveja. Somente assim poderemos redescobrir o que significam as palavras: “Vós sois o sal da terra e a luz do mundo”.
Senhor, que a autoridade e a força da tua Palavra revele a minha identidade de ser discípulo. Reconheço que ser sal da terra e luz do mundo não é um simples convite, mas a Revelação da tua presença em mim. Ao ouvir a tua voz e colocar-me na disposição de implantar o teu Reino sou sal na terra e luz no mundo. Ao dar sabor à vida de tantas pessoas que me cercam sou a tua presença viva e atuante nos mais diversos ambientes. Ajuda-me a ser força que liberta da corrupção, como faz o sal; e ser luz que traz iluminação. Ensina-me a trazer lucidez e clareza para a vida de muitos. Quero revelar a tua beleza na noite escura do mundo.
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 5,13-16
Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos:
13 "Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal se tornar insosso, com que salgaremos? Ele não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e ser pisado pelos homens.
14 Vós sois a luz do mundo. Não pode ficar escondida uma cidade construída sobre um monte.
15 Ninguém acende uma lâmpada, e a coloca debaixo de uma vasilha, mas sim, num candeeiro, onde brilha para todos que estão na casa.
16 Assim também brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus". Palavra da Salvação.
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