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O toque que cura

  • Foto do escritor: Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
    Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
  • 3 de set. de 2021
  • 4 min de leitura

Atualizado: 10 de set. de 2021

Após a longa discussão sobre o puro e o impuro, Jesus continua o seu caminho até o mar da Galileia e atravessa a região da Decápole. Nesse caminho é trazido a Ele, um homem surdo que fala com dificuldade e se expressa de forma desconexa e incompreensível. Sua incapacidade de se comunicar aflige-o privando-lhe de sua subjetividade. Este homem é totalmente passivo.


No tempo de Jesus todas as doenças eram consideradas como castigo de Deus. A surdez era uma maldição porque impedia de ouvir a palavra do Senhor proclamada nas sinagogas. O surdo não conseguindo ouvir o que lhe é dito, por consequência, não consegue se comunicar e se relacionar. Vive isolado e fechado em seu próprio mundo.

O gesto terapêutico de Jesus adquire um valor espiritual-simbólico. Segue a linha das expressões bíblicas que falam em circuncidar os ouvidos para escutar (cf. Jr 6,10), abrir as orelhas (cf. Sl 40,7), abrir o canal através do qual a revelação chega ao coração do homem, dando-lhe a oportunidade de louvar a Deus e anunciar as suas ações (cf. Is 50,4).

Diferente das outras curas realizadas, Jesus inicia um processo terapêutico longo, personalizado, feito de gestos e de palavras. Ele leva o homem para fora da multidão. O objetivo de Jesus não é impressionar, nem buscar popularidade ou sucesso, mas somente fazer o bem.


É significativo que Jesus para curar a incapacidade comunicativa e redescobrir a subjetividade do surdo-mudo, lhe tenha separado da multidão. O gesto mostra-se paradoxal. No entanto, é ali distante de todos que acontece a experiência pessoal com Jesus. De fato, Jesus reconhece a real necessidade do homem. A necessidade de intimidade autêntica, de comunhão verdadeira, de comunicação eficaz e de relação honesta. Essas são as necessidades escondidas atrás daquele silêncio.


Então, Jesus põe o dedo no ouvido do surdo e o toca a língua com sua saliva. O gesto é audacioso: parece um beijo, pois a saliva de um se mistura com a saliva do outro. O gesto é um verdadeiro "com-tato" que penetra o homem com força vital do poder comunicação de Jesus.

Jesus com o tato das suas mãos toca a dificuldade do homem. A narrativa revela o gesto de solidariedade de Jesus que sofre com o sofredor, entra em empatia com o doente e invoca a libertação. Enfim, é a relação de Jesus com o Pai que lhe garante a possibilidade de refazer, de recriar, de potenciar, rezar, suspirar e dizer: “Effatá!”.

Não há nenhuma expressão mágica no gesto terapêutico de Jesus. Em outros trechos dos Evangelhos, observamos curas com o poder da palavra de Jesus, mas aqui quem cura é o próprio corpo, o toque. O corpo de Jesus é a sua palavra: eis o mistério da encarnação. Ele cura outro corpo com seu próprio corpo. Podemos nos apropriar deste ensinamento para curarmos uns aos outros.


Além do mais, o contato com este homem simboliza que a salvação é uma experiência de alteridade, de abertura, de entrega e de confiança no outro. Somente sou eu no mundo porque existe o outro que me faz ser. Sem o outro, nada sou. Neste encontro, a dimensão física é central.

O texto fala de mãos, dedos e tato, de escuta e de ouvidos, de língua, saliva e fala, de olhos e olhar. Se o corpo é a nossa forma de estar no mundo e de nos comunicarmos com o mundo, Jesus desperta a vida corpórea e os sentidos daquele homem para que ele redescubra o sentido da vida. Dessa maneira, Jesus mobilizou todos os seus sentidos para “destravar” os sentidos bloqueados deste enfermo.

Effatá é uma palavra aramaica e significa “abre-te”. Não está dirigida ao ouvido, mas ao homem que não consegue ouvir. É um convite para abrir as portas do coração e deixar que Cristo e seu Evangelho entrem na vida e transformem a história.


“Abre-te” é a palavra poderosa do Criador e não somente indica o resgate de uma função cotidiana, mas devolve ao surdo-mudo sua vocação de relação, obediência e louvor. “Abre-te” é o convite que Jesus dirige: abre-te a este mundo que te assusta, abre-te às relações que te decepcionaram, abra o teu coração para aquela vida que desististe de enfrentar. Abre-te é a palavra que supera qualquer fechamento, toda surdez, todo silêncio. Abre-te é um desafio de vida. A abertura é uma dimensão. Abrir-se significa deixar entrar e conhecer a possibilidade do novo, não desistindo de viver.


Depois do Effatá, Marcos revela um detalhe interessante: o homem não apenas voltou a falar, mas voltou a falar sem dificuldade. Isso significa que sua dificuldade estava em corretamente conseguir se comunicar. O que o empurrava para aquele silêncio foi a percepção de não saber como se comunicar, a experiência de não se sentir compreendido e o sentimento de rejeição e de julgamento das suas experiências. O homem voltou a falar sem dificuldade porque sentiu-se amado, cuidado, abraçado, alcançado e tocado.


Falar sem dificuldade significa voltar a dizer algo sensato, sem palavras de poder, arrogância, dominação ou engano. Falar sem dificuldade é aprender a falar com o coração, com os gestos. Falar sem dificuldade é falar em prol da comunhão, da unidade, da justiça e da paz.


Senhor, tenho necessidade de intimidades autênticas, de comunhões verdadeiras, de comunicações eficazes e de relações honestas. A minha surdez é advinda da dificuldade de encontrar tais sentimentos. Quando me fecho, não sou capaz de escutar sua Palavra. Abre meus ouvidos, toca na minha língua, ajuda-me a não ter medo de comunicar-me. Quero encontrar a minha vocação de relação, de obediência e de louvor. Desejo aprender a falar sem dificuldade e a falar com o coração.


LFCM.

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2 comentários


fvictorvago
fvictorvago
04 de set. de 2021

Maravilhosa homilia!

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Marcia Severo
Marcia Severo
04 de set. de 2021

Frei sua sensibilidade com a palavra me leva a querer sempre estar perto da Palavra, conhecendo e aprendendo frequentemente para poder vivê-la. Obrigada

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