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Os dois corações

  • Foto do escritor: Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
    Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
  • 22 de out. de 2022
  • 5 min de leitura

Atualizado: 26 de nov. de 2022


O Evangelho desta liturgia nos traz a parábola do fariseu e do cobrador de impostos. Esses dois personagens encarnam a possibilidade e a capacidade de uma pseudo ou verdadeira oração. Esta narrativa é apenas encontrada nos escritos de Lucas e, com a parábola do juiz injusto e da viúva insistente, formam um compêndio sobre a oração. Esse compêndio nos ensina que a maneira com que nos posicionamos em oração revela nossa ideia de Deus, dos outros e de nós mesmos.

O modo com que rezamos é expressão daquilo que somos e do que acreditamos. Dessa maneira, a parábola do fariseu e do publicano que sobem ao Templo continua nossa reflexão sobre o tema da fé como uma relação íntima, fundamento e luz orientadora de nossa existência.

A oração do fariseu, homem “religioso”, do bem, impecável, infalível, irrepreensível, de história embaraçante, de boas ações e de generosidade, é maior do que o prescrito. Ele possui observância fiel que aumenta sua autoestima e o faz sentir-se protagonista, colocando-se no centro da cena. Sua oração parece começar bem: “Ó Deus, eu te agradeço...”. No entanto, seu monólogo arrogante é marcado pelo orgulho de supostos preceitos que enumera e afirma observar. Ele se posiciona diante de Deus como se estivesse diante de um juiz. Sua maneira de orar revela sua visão distorcida e sua ideia de Deus. Ele acredita estar orando e ostentando justiça a Deus, mas volta para casa sem justificativa adequada. Em suma, ele não ora a Deus, mas contempla sua própria vaidade e orgulho. A "oração" do fariseu é uma ofensa a Deus. Ele não reconhece em si os dons divinos. Pelo contrário, usa-os para destruir a dignidade do outro e construir falsas narrativas, tentando persuadir a Deus, que tudo sabe.

O cobrador de impostos, entra no Templo de cabeça baixa, não tem nada para dizer a Deus, apenas sua miséria, seu pecado e os “mil descompromissos” que tem para consigo e para com a Lei. Ele traz as mãos vazias e, com elas, bate no peito dizendo com este gesto, que ali, naquele coração frágil, está a causa de toda sua miséria. Ele não diz muitas palavras. Apenas profere uma sensata exclamação que nós, homens, deveríamos repetir, diariamente, diante da grandiosidade do Criador: “Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!”. Com sua oração, ele se apresenta como realmente é. Sua sobrecarga de pecado, faz com que acredite que os outros homens, inclusive o fariseu, eram melhores e mais puros do que ele. Entretanto, sua sinceridade e o reconhecimento do seu "nada", o faz voltar para casa totalmente preenchido do dom e da misericórdia divina.


Jesus não conta esta parábola para falar diretamente da oração, mas para ensinar sobre dois corações. Sobre duas maneiras de ser homem diante de Deus e dos outros. Por meio desta história, Jesus instrui que a oração é o espelho que revela dois corações de homens. É através da forma de orar que conhecemos a qualidade de um homem diante de Deus. Os dois homens da parábola desenham duas facetas: uma de quem realmente somos e a outra daquilo que dizemos ser para os outros. É muito difícil viver a verdade sobre si mesmo. O paradoxo é que a vida permite construir o caráter que pretendemos exibir diante de Deus e diante dos outros. As facetas do fariseu e do cobrador de impostos habitam em nós. De forma contemporânea, somos um e outro. Nenhum de nós é somente justo ou pecador. A grande incoerência acontece quando nos comportamos como o cobrador de impostos na vida e como o fariseu nos templos.


O ensinamento central da parábola não está na melhor forma para se rezar, mas na verdade, na consciência e na sinceridade que consiste uma oração. O fariseu não conhece a verdade de Deus, nem a verdade sobre si mesmo. Ele está “embriagado” dele próprio. Ele é o único horizonte e referência de sua vida. Por outro lado, o cobrador de impostos não conhece nada, além da sua verdade, ou seja, sua pobreza pecadora. Ele está com mãos vazias e sua única esperança é a misericórdia divina. Reconhecendo suas limitações e fragilidades, ele conhece a verdade e é capaz de saber quem é Deus. Ele experimenta Deus no amor misericordioso da absoluta gratuidade. A sabedoria do cobrador de impostos consiste no reconhecimento de si mesmo, sem facetas e sem máscaras, mas com sinceridade de coração. Isto lhe garante conhecer e experimentar Deus.


A vida do fariseu não é reconciliada, ao contrário do cobrador que é reconciliado com seus limites, imperfeições e pecados. A qualidade da nossa oração acontece quando assumimos a consciência da nossa própria fragilidade pessoal confrontando-se com as adversidades da história e do tempo.

É do reconhecimento da fragilidade humana que nasce a força orante e faz brotar a sincera e eficaz oração. Nessa dinâmica, não há necessidade de prerrogativas pessoais, protagonismos exclusivos e lógicas burocráticas. Quando fazemos a experiência das nossas fragilidades, atingimos o àpice do mais belo recurso orante. Assim, nos tornamos capazes de compreender e se comprometer com os limites dos outros de modo sensível, verdadeiro, delicado e acolhedor.

Muitas vezes, nossa obsessão diária é colocar nosso próprio ego no centro da oração, dos sentimentos e dos pensamentos. Parece que o único pronome existente em nossa boca é o “Eu”, como faz o fariseu. Sua "egolatria" é tão prepotente que se coloca no lugar de Deus, buscando a si mesmo e, por isso, não O experimenta e reconhece. O cobrador de impostos aceita seus limites e sua imperfeição, reconhecendo-se pecador. Em sua oração, dirige-se a Deus, diferente do fariseu, com o pronome “Tu”: tende piedade de mim! O cobrador de impostos não precisa se esconder. Sua imperfeição é óbvia, pois ele trabalha para os pagãos tocando no dinheiro. É impuro, limitado e escravo. Ele faz um trabalho considerado maldito e proibido pelos Hebreus. Por ser evidente, não esconde sua imperfeição. O fariseu, por outro lado, defende sua imagem, por não admitir a si mesmo e aos outros que é verdadeiro pecador.


Enquanto o fariseu faz de sua oração ele mesmo, ao elevar o "Eu" em seu discurso oracional, o cobrador de imposto, eleva em alto tom o Outro, o "Tu", reconhecendo sua dependência da misericórdia do Pai. Esse tipo de oração o desloca para uma relação de fé, cujo motivo inicial não é o desejo de conversão, mas o ponto de partida que o faz reconhecer suas faltas e limitações tomando consciência de quem ele realmente é.

Orar é reconhecer que sempre nos falta algo e que somente um Outro pode nos dar, numa relação livre que não leva em conta, nossas virtudes e méritos, mas que nos torna conscientes de nossos pecados e fragilidades. A sincera oração nasce do reconhecimento de que precisamos de Alguém para suprir as necessidades que não podem ser supridas sozinhas e nem por nós mesmos.

A autêntica oração cristã deve ser realizada em “lugar extraordinário" e não apenas nos lugares ordinários: templos e igrejas. Ela deve ser proferida “em” Deus que habita tudo e todos. O cristão deve rezar em qualquer tempo e lugar onde se sinta envolvido no amor paterno de Deus, na ternura do Filho que se entregou por nós e nos ama e no abraço do Espírito que nos habita e nos atrai a Ele. Nosso ato de louvor não deve ser suscitado ou proferido somente em lugar ordinário, mas deve brotar do desejo sincero de reconhecimento da nossa limitação diante da grandeza do Criador. Nosso louvor deve ser a resposta mais sincera por tudo o que Ele fez e faz gratuitamente por nós.


Senhor, conceda-me reconhecer minhas limitações e fraquezas diante de Sua grandiosidade e de Seu amor para que eu possa Te conhecer e experimentar. Ensina-me a colocar no centro de minha oração um "Tu" que me conscientize de que sou necessitado do Outro para receber misericórdia e misericordiar. Dá-me um coração verdadeiro, consciente e sincero capaz de reconhecer que sou justo e pecador. Faz-me lembrar de que quando o orgulho e a vaidade tornarem o foco de minha oração, eu grite com fervor: “Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!”.


LFCM.

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1 Comment


Marcia Severo
Marcia Severo
Oct 23, 2022

Bom Dia Frei!!! Gratidão pôr-me enviar. Aguardo sempre suas palavras que me fazem pensar o quanto eu preciso do Nosso Senhor. Paz e Bem🙏🏽

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