Um mistério escandaloso
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
- 14 de jan. de 2023
- 6 min de leitura
Retornando ao “Tempo Comum”, a liturgia reapresenta a figura de João Batista para nos dizer que o itinerário da nossa caminhada deve ser marcado pelo desejo de conversão e pelo desejo de testemunho. O evangelista João, ao contrário dos outros três, não descreve o evento do Batismo de Jesus, mas propõe o exemplo de João Batista, a primeira testemunha de Cristo e o primeiro a reconhecê-Lo. O trecho do Evangelho de hoje nos fala da manifestação de Jesus. Depois das grandes festas natalícias, o novo tempo que a Igreja nos dá é um forte convite para construirmos nossos dias. É na vida quotidiana que podemos experimentar as maravilhas do Deus-conosco, a novidade e a beleza do rosto revelado de Jesus.
No Natal, o Menino foi revelado aos pastores de Israel. Aos Magos do Oriente, Ele apareceu como “rei dos judeus” revelando-se a todos os pagãos. Agora, no Jordão, entre aqueles que estavam sendo batizados por João, Ele recebe a revelação de ser o “Cordeiro de Deus” e inicia sua missão pública “de Jesus Cristo, Filho de Deus”. É no meio dessa gente que Jesus se dá conta de quem Ele é, o que deve fazer, como deve fazê-lo e para quê veio. A revelação pública da missão de Cristo é um mistério escandaloso. É o sinal que João esperava. É Ele! Jesus é o Messias. João está desconcertado porque Ele se manifesta inimaginavelmente no meio dos pecadores, batizado como eles, aliás, por eles.
O Batista convida-os a mudar o olhar. Dirigindo-os para o essencial, ele os convida a olhar para o Senhor. De fato, o convite à conversão é um convite para uma mudança profunda porque soa como um convite à mudança de pensamento. A conversão permanece aparente e superficial quando não se abandona os esquemas habituais do velho modo de pensar. A mudança e a conversão permanecem na intenção quando não se traduzem em ação. Através do protagonismo de João, somos convidados a mudar de vida para acolher Deus que vem ao nosso encontro.
A proximidade do “Reino dos Céus” indicada por João nos mostra que Deus está próximo de nós. É preciso mudar para dar espaço a Ele. Um bom caminho para iniciarmos a mudança é purificando nossas razões, limpando nosso coração e abrindo nossas mãos. Nossas razões estão sempre cheias de coisas e os nossos corações estão sempre cheios de sentimentos supérfluos. Dessa maneira, tornamos nosso caminho pesado e quase impossível de ser percorrido. É preciso darmos espaço para Deus a fim de percebermos o essencial e de escaparmos da tentação de absolutizar todos os meios. O testemunho de João Batista convida-nos a recomeçar sempre nosso caminho de fé: de Jesus Cristo, o Cordeiro cheio de misericórdia que o Pai nos deu.
O Cristo entra na mesma água que os pecadores entram em busca de purificação. Ele não se coloca de longe, afastado e com medo de se contaminar, mas se envolve, é solidário com os pecadores, toca a carne ferida pelo pecado e se deixa ser considerado um pecador. Ele vem ao nosso encontro nos espaços que marcam nossa indignidade, nossa perdição e nossa inadequação. Ele quer nos encontrar nos lugares dos passos de nossa conversão. Por isso, Ele não permaneceu no céu para impor disposições e controlar tudo, mas assumiu nossa carne ferida pelo pecado. Jesus com o Batismo orienta sua vida: fazer a vontade do Pai sendo solidário com a humanidade ferida. Após o Batismo, Deus se manifesta. Os céus se abrem, referindo-se à profecia, e João vê o Espírito descer sobre Ele.
João viu algo maravilhoso, isto é, o amado Filho de Deus sendo solidário com os pecadores e o Espírito Santo fez-lhe compreender a novidade inaudita, uma verdadeira inversão. A visão de João sobre a descida do Espírito e a permanência desse mesmo Espírito na pessoa de Jesus é um fato importante do Evangelho. A descida do Espírito Santo manifesta que Ele é o escolhido do Pai para realizar um projeto de salvação. A permanência do Espírito confirma que todas as ações realizadas e todas as mensagens de Jesus servem para revelar o projeto de amor do Pai. É por força e por ação do Espírito Santo que Jesus batiza e tira o pecado do mundo. O Batismo de Jesus marca o início do Reino de Deus no meio dos homens. Não mais um anúncio, mas uma presença atuante, visível e concreta: “Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo”.
O verbo “ver” é frequente no Evangelho de hoje: “Eu vi Jesus aproximar-se”, “Eu vi o Espírito descer”, afirma João Batista. Se o desejo do Pai era mostrar o Seu rosto no Filho, João conseguiu ver essa revelação através da confirmação do Espírito: “Eu vi e dou testemunho. Este é o Filho de Deus!”. João não é simplesmente o precursor do Messias, mas é o testemunho de que Jesus é o Filho de Deus. Ver é a graça da fé. A fé nasce do encontro, da experiência e da vida. O cristianismo é uma religião do ver, pois nos convida sempre ver um Deus que toma iniciativa, anula as distâncias e nos convida a viver com Ele. A graça dessa visão nos dá a oportunidade de sermos testemunhas. O cristão é aquele que conseguindo ver o que os outros não veem, admira-se do modo como o Senhor se revela.
Ao contrário da tradição judaica, na qual o homem se oferece a Deus, somos convidados inverter a lógica. É Ele quem se oferece por nós, quem se entrega e se doa à humanidade. Esta inversão é verdadeira revolução porque muda as prioridades do seguidor de Cristo: não há nada a conquistar, tudo é um dom a ser acolhido e partilhado. Jesus-Cordeiro, identificado com o animal do sacrifício, introduz algo que subverte e revoluciona o rosto de Deus. O Senhor não deseja sacrifícios ao homem, mas sacrifica-se a si mesmo não exigindo a vida do homem, mas oferecendo a sua própria vida.
João manifesta sua admiração e seu consentimento à novidade trazida por Jesus através de uma expressão significativa: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Uma expressão acompanhada pelo olhar e pelo gesto da mão indicando Jesus. Ele aponta para o Cordeiro de Deus e não para um cordeiro desconhecido que deve ser imolado nas ceias pascais do povo hebreu todos os anos. O Cordeiro de Deus não serve apenas para lembrar da libertação do povo do Egito, mas para livrar de uma opressão maior do que a escravidão na “casa do Faraó”, a libertação de estruturas existenciais adoecidas por causa do pecado. O Cordeiro de Deus vem para tirar o “pecado” do mundo, não os “pecados” do mundo. O pecado do mundo não são apenas os pecados que cometemos no dia a dia em nossa caminhada, mas é a decisão livre de não querer ver a Deus, de não se relacionar livremente com Ele. O pecado do mundo não os singulares atos de desencontro, mas uma estrutura condicional de revolta e de não aceitação do Deus que permanece no meio de nós. Somente e unicamente Ele que salva o seu povo do pecado libertando-o e guiando-o para a verdadeira liberdade.
Senhor, concede-me a graça da mudança de pensamento e de olhar a fim de que eu possa compreender o mistério escandaloso de sua revelação pública. Purifica minha razão, limpe meu coração e ensina-me abrir minhas mãos. Capacita-me a ver aquilo que os outros não veem admirando como o Senhor se revela a mim. Dá-me a consciência para querer ver a Deus e a me relacionar com Ele, reconhecendo seu filho Jesus como o único “Cordeiro que tira o pecado do mundo”.
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo João1,29-34
Naquele tempo,
29 João viu Jesus aproximar-se dele e disse: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.
30 Dele é que eu disse: 'Depois de mim vem um homem que passou à minha frente, porque existia antes de mim'.
31 Também eu não o conhecia, mas se eu vim batizar com água, foi para que ele fosse manifestado a Israel".
32 E João deu testemunho, dizendo: "Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele.
33 Também eu não o conhecia, mas aquele que me enviou a batizar com água me disse: 'Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo'.
34 Eu vi e dou testemunho: Este é o Filho de Deus!" Palavra da Salvação.
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